Em 2017, eu ainda não sabia que era autista, embora muitas das características do autismo fossem bem evidentes em mim. O autismo é uma condição que pode se manifestar de diversas maneiras, incluindo uma percepção diferenciada do perigo, uma resposta ao medo que varia de pessoa para pessoa e, muitas vezes, um senso de justiça e altruísmo acentuado. Estudos mostram que pessoas autistas frequentemente possuem um forte senso de justiça e uma disposição para ajudar os outros, características que podem ser canalizadas para ações significativas.
Certo dia, em 2017, estava voltando do trabalho para casa em Goiânia. Eram 23h e eu estava no ônibus quando dois rapazes começaram a tramar um roubo, conversando atrás do meu assento. Algumas pessoas no ônibus começaram a ficar apavoradas, mas eu, impulsionado pelo senso de justiça e pela ausência de um medo paralisante, senti que deveria fazer algo para impedir o que estava prestes a ocorrer.
Naquele momento, um texto bíblico veio à minha mente: a passagem onde Davi se faz de louco para enganar os filisteus (1 Samuel 21:10-15). Fechei meus olhos, acalmei meu coração, respirei fundo e esperei pelo momento em que eles atacariam. Quando finalmente anunciaram o assalto, comecei a passar muito mal com uma crise de asma. Meu peito chiava alto e eu estava aparentemente sem ar. Os assaltantes, surpreendentemente, ficaram desesperados. Um deles veio me ajudar, perguntando onde estava minha bombinha de asma. Eu a tirei do bolso, mas antes que pudessem fazer algo, o ônibus chegou à parada deles e eles desceram rapidamente. Um deles ainda gritou: “Você precisa se cuidar senão vai morrer.”
Assim que desceram, minha crise de asma cessou. As pessoas no ônibus, ainda chocadas, comentavam sobre o quase roubo e perguntavam se eu estava melhor. Foi então que expliquei que havia fingido a crise de asma para impedir o roubo. O ônibus caiu em um silêncio atônito, até que alguém sussurrou um “obrigado”. Aquele momento foi uma demonstração clara de como Deus pode usar qualquer deficiência para o bem do Seu Reino.
Quando Deus me chamou para missões, senti-me como Davi, que foi ungido para ser rei. Davi disse que Deus o chamou e lhe deu a força para matar um leão, um urso e, eventualmente, o gigante Golias. Da mesma forma, Deus, através do autismo, me deu características, qualidades e desafios que, quando utilizados para o Seu Reino, se tornam inigualáveis.
Autistas de todos os níveis de suporte, sejam eles de nível 1, 2 ou 3, têm potencial para serem usados por Deus de maneiras extraordinárias. No entanto, é importante entender que muitas vezes não vamos corresponder às expectativas das pessoas ao nosso redor. As nossas respostas emocionais, nosso comportamento e até mesmo a nossa percepção do mundo podem ser diferentes. Mas é precisamente nessas diferenças que Deus pode operar maravilhas.
Pessoas autistas podem apresentar um altruísmo genuíno, muitas vezes se dedicando a causas justas e ao bem-estar dos outros com uma intensidade única. Esse senso de justiça pode nos levar a agir em situações onde outros poderiam hesitar, como foi o caso do incidente no ônibus. Além disso, a maneira como percebemos o medo pode nos dar uma coragem inesperada, permitindo-nos enfrentar situações desafiadoras com uma calma surpreendente.
Concluo este relato reafirmando que Deus usa cada um de nós, com todas as nossas peculiaridades e desafios, para cumprir os Seus propósitos. Como autistas, temos um papel único e valioso no Reino de Deus. Não precisamos nos conformar às expectativas humanas, mas sim buscar sermos instrumentos nas mãos de Deus, permitindo que Ele faça através de nós tudo aquilo que é impossível aos olhos humanos. Que nossa jornada, com todas as suas particularidades, glorifique a Deus e inspire outros a verem a beleza na diversidade e nas capacidades únicas que cada um de nós possui.
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Casado com Janaína e pai do Ulisses. Tutor da Zaira (Chow-Chow) e do Paçoca (hamster). Escritor por hiperfoco e autista de nascença. Membro e presbítero da Igreja REMIDI e missionário pelo PRONASCE. Teólogo, Filósofo e Pedagogo em formação. Especialista em Docência do Ensino Superior e em Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva. Meus autores preferidos são: Agostinho, Kierkegaard, João Wesley, Karl Barth, Bonhoeffer, Tillich, C. S. Lewis, Stott e alguns pais da igreja. Meus hobbys são: ler, assistir filmes e séries.