Entre a Fé e o Preconceito: A Igreja e o Sofrimento Mental

A igreja, historicamente, sempre se apresentou como um local de acolhimento, onde o doente, o quebrantado e o necessitado encontram alívio e consolo. No entanto, quando o assunto é doença mental, essa imagem de refúgio nem sempre se mantém. Em pleno século XXI, em um mundo inundado de avanços científicos e acesso à informação, muitos segmentos da igreja ainda se agarram a concepções arcaicas sobre o sofrimento humano, perpetuando preconceitos e causando danos àqueles que mais necessitam de cuidado e compaixão.

Leia também: Sobre o Estranho Preconceito

Dentro do corpo eclesiástico, há uma grande diversidade de posturas quanto às doenças, tanto físicas quanto mentais. De um lado, encontramos aqueles que veem todo tipo de enfermidade como falta de fé ou resultado de ação demoníaca, especialmente no que se refere a doenças mentais. Por outro lado, há os que aceitam que Deus permite doenças físicas em seus servos, mas não conseguem conceber a ideia de um servo de Deus sofrer psicológica ou mentalmente de forma prolongada. Assim, depressão, ansiedade, transtornos mentais ou neurológicos são frequentemente vistos como sinal de fraqueza espiritual, falta de Deus, ou até de possessão demoníaca.

Essa mentalidade afeta profundamente a vida de muitos cristãos que lutam em silêncio. Enquanto doenças como câncer, diabetes ou asma são vistas como batalhas que podem ser enfrentadas com o apoio da igreja e da medicina, transtornos mentais são tratados como tabu. A verdade incômoda é que a igreja, em muitos casos, age com crueldade ao desconsiderar o sofrimento mental, criando um ambiente onde as pessoas sentem que precisam esconder suas lutas internas para não serem vistas como “menos espirituais”.

A Bíblia não silencia sobre o sofrimento. O profeta Elias, um dos maiores servos de Deus, após grandes feitos, fugiu para o deserto desejando a morte, abatido pelo esgotamento emocional. Jó, conhecido por sua paciência, passou por angústias tão profundas que desejou jamais ter nascido. No entanto, é raro encontrar sermões que lidem com esses aspectos da saúde mental dos personagens bíblicos. Preferimos destacar o sobrenatural e o final feliz, deixando de lado o longo processo de dor e cura, que muitas vezes envolve mais do que oração: envolve cuidado, empatia e tratamento.

Recentemente, figuras influentes, como John MacArthur, declararam que distúrbios como o Transtorno de Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) não existem, enquanto alguns pastores brasileiros atribuem o autismo à ação demoníaca. Declarações como essas são devastadoras, pois não só invalidam a realidade do sofrimento, mas também afastam aqueles que mais precisam da igreja. Muitos se veem forçados a buscar respostas e acolhimento em locais que, embora prometam cura imediata e mágica, oferecem pouco mais do que ilusão e manipulação. Esses “atalhos” espirituais muitas vezes surgem como alternativas atraentes porque a igreja falhou em ser um espaço seguro e acolhedor.

A pergunta que devemos nos fazer é: onde estão essas pessoas com doenças mentais e sofrimento exacerbado? Por que não estão em nossas igrejas? A resposta pode ser dura, mas é necessária. Muitos não estão porque não encontram acolhimento, não encontram o Cristo compassivo, mas sim um sistema que perpetua preconceitos e estigmatiza suas dores. Será que a igreja de hoje está realmente disposta a caminhar com essas pessoas, ou continuamos agarrados a mentalidades ultrapassadas, negando-lhes o cuidado integral que tanto precisam?

A Bíblia nos chama a sermos um corpo — e como corpo, precisamos cuidar de todos os membros, especialmente daqueles que estão feridos. Ser igreja é entender que Cristo veio para os doentes, para os cansados, para os quebrantados. E isso inclui todos os tipos de doença, seja do corpo, seja da mente. A verdadeira questão que devemos levantar não é se Deus cura, mas se estamos dispostos a ser as mãos de Deus no processo de cura, caminhando ao lado daqueles que sofrem, sem julgamentos ou reducionismos.

Se a nossa igreja não é um lugar onde essas pessoas se sentem acolhidas, então, talvez, o problema não esteja na falta de fé delas, mas na nossa falta de entendimento e compaixão.

Views: 1

Casado com Janaína e pai do Ulisses. Tutor da Zaira (Chow-Chow) e do Paçoca (hamster). Escritor por hiperfoco e autista de nascença. Membro e presbítero da Igreja REMIDI e missionário pelo PRONASCE. Teólogo, Filósofo e Pedagogo em formação. Especialista em Docência do Ensino Superior e em Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva. Meus autores preferidos são: Agostinho, Kierkegaard, João Wesley, Karl Barth, Bonhoeffer, Tillich, C. S. Lewis, Stott e alguns pais da igreja. Meus hobbys são: ler, assistir filmes e séries.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *