E se Jesus fosse autista? Para alguns, essa pergunta soa como uma provocação, para outros, um mero exercício de imaginação. No entanto, o impacto dessa simples questão vai muito além de especulações sobre diagnósticos possíveis; ela nos leva ao âmago da nossa visão de quem Cristo é e, talvez mais profundamente, do que entendemos sobre a humanidade.
A série The Chosen, da Angel Studios, trouxe uma representação de Mateus como um discípulo autista. Mateus, o cobrador de impostos, cuja função o isolava da sociedade, cujas interações são descritas nos evangelhos como breves e muitas vezes incômodas. A escolha narrativa de retratá-lo como autista despertou reações apaixonadas — favoráveis e contrárias. E, talvez, todas essas respostas dizem menos sobre Mateus e mais sobre nossos próprios preconceitos e nossa dificuldade de ver a humanidade em sua diversidade como digna e amada por Deus.
De fato, é impossível saber se Mateus era autista. A Bíblia não descreve detalhadamente as características dos discípulos, e é justo que uma produção televisiva explore essas possibilidades. Mas a pergunta vai mais fundo: e se Jesus fosse autista? Essa possibilidade não deveria nos escandalizar, pois, na realidade, Jesus ultrapassa qualquer categorização humana. Contudo, a reação imediata de alguns é a rejeição: “De jeito nenhum, Jesus era perfeito!”. Mas essa resposta carrega consigo implicações que nos desafiam a refletir sobre o que realmente significa ser “perfeito”.
Autismo não é uma imperfeição moral, nem uma doença. É uma variação da experiência humana, uma configuração do cérebro que traz consigo desafios, habilidades únicas, e modos diversos de se conectar com o mundo. Dizer que Jesus “não poderia ser autista porque era perfeito” implica que ser autista é algo inferior, algo a ser corrigido — mas, e se ser autista for apenas um modo legítimo de ser humano, assim como qualquer outra configuração do cérebro?
A Bíblia nos revela um Cristo que não só compartilhou da nossa carne, mas também das nossas dores e limitações. Em Filipenses 2, Paulo nos ensina que Jesus se esvaziou, assumindo a condição de servo, sendo feito semelhante aos homens. Ele se fez humano, mas não de um modo específico que o tornasse idêntico a um grupo ou outro. Cristo transcende as categorias que nós mesmos criamos. Ele é o homem superior, sem pecado, mas ainda assim um de nós, no sentido mais profundo que isso pode ter.
Há um ponto ainda mais provocativo: se cremos que Jesus é o “caminho, a verdade e a vida”, então cada pessoa que reflete algo da imagem de Deus reflete também algo de Cristo. Isso inclui aqueles que têm autismo, aqueles que lutam contra doenças, aqueles que enfrentam desafios diários para se encaixar em um mundo que muitas vezes é impiedoso com qualquer diferença. Jesus diz que tudo o que fizermos aos seus pequeninos, a ele fazemos. Ser autista ou não ser autista são apenas expressões da nossa humanidade caída, fragmentada, mas digna. Cristo veio para nos redimir de nós mesmos, de nossas limitações e, principalmente, de nosso pecado.
João nos lembra que não sabemos como seremos, mas sabemos que seremos semelhantes a ele (1 João 3:2). Isso significa que todas as nossas definições atuais, seja “autista” ou “não-autista”, cairão. Seremos como Cristo, glorificados nele, transcendendo nossas falhas, nossos rótulos, nossas divisões.
Assim, perguntar se Jesus poderia ser autista não deveria nos causar repulsa, mas sim nos levar a uma profunda introspecção sobre nossos preconceitos. Se nossa primeira resposta é rejeitar essa possibilidade, é importante perguntar: por quê? Que conceitos errados sobre perfeição estamos carregando? Que preconceitos ainda não confrontamos dentro de nós?
Cristo se fez carne, carne como a nossa, para que todos nós — autistas ou não-autistas, ricos ou pobres, marginalizados ou aceitos — pudéssemos ser transformados. Para que deixássemos para trás aquilo que nos prende e nos afastássemos de uma visão estreita de perfeição humana. Porque, no fim, seremos todos transformados na imagem daquele que não cabe em nenhuma das categorias que, tantas vezes, criamos para limitar o que entendemos como ser humano.
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Casado com Janaína e pai do Ulisses. Tutor da Zaira (Chow-Chow) e do Paçoca (hamster). Escritor por hiperfoco e autista de nascença. Membro e presbítero da Igreja REMIDI e missionário pelo PRONASCE. Teólogo, Filósofo e Pedagogo em formação. Especialista em Docência do Ensino Superior e em Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva. Meus autores preferidos são: Agostinho, Kierkegaard, João Wesley, Karl Barth, Bonhoeffer, Tillich, C. S. Lewis, Stott e alguns pais da igreja. Meus hobbys são: ler, assistir filmes e séries.