Se eu pudesse acordar, só por um dia, e ver o mundo como uma pessoa não autista, talvez eu finalmente entendesse como é sentir, pensar e agir num sistema que parece tão estranho para mim. Existe uma sensação de isolamento que acompanha o autista em um mundo feito para os neurotípicos, como se estivéssemos rodando um “sistema operacional” que não se adapta às regras do ambiente. Eu sei que as pessoas são diferentes entre si, mas pesquisas mostram que, de fato, existe uma linha que nos separa — nós, autistas, vivemos em um mundo onde a realidade é interpretada de forma diversa, e nosso “software cerebral” carrega desafios que nos são próprios, muitos deles percebidos como “erros” ou “bugs” pela sociedade.
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Para aqueles de fora, é difícil entender a profundidade do que isso significa. Crescemos em um ambiente que nos ensina, direta ou indiretamente, que incomodamos. Desde muito cedo, percebemos que nossos modos de ser e de pensar são motivo de desconforto para os outros e precisamos aprender a “não incomodar”. Somos educados a evitar certos gestos, a mascarar nosso jeito, a controlar aquilo que nos é natural para que os neurotípicos ao nosso redor fiquem à vontade. E, sem perceber, vamos nos escondendo cada vez mais.
Essa adaptação, no entanto, tem um preço alto. Somos forçados a priorizar as expectativas de outras pessoas, deixando nossos interesses e necessidades para segundo plano. O ato de se mascarar se torna uma segunda natureza, uma proteção e, ao mesmo tempo, uma prisão. Aprendemos a negar partes de nossa própria identidade porque a sociedade nos diz, com palavras ou olhares, que somos “estranhos” e que precisamos mudar para nos adequarmos. Essa conformidade é ensinada por todos os lados: desde a família, que nos ama e quer nos proteger, até professores, colegas e outras figuras de autoridade que insistem para seguirmos o padrão.
E, como consequência, acabamos nos maltratando. Ao esconder quem realmente somos, renunciamos a viver com autenticidade. Colocamos a nossa verdade em segundo plano para corresponder a uma expectativa externa, e essa renúncia constante nos afeta profundamente, tanto emocional quanto fisicamente. Aprendemos, ao longo do tempo, a valorizar menos nossas preferências, a nos impor menos, a nos negar mais. E, assim, passamos a viver menos, não por opção, mas por imposição de um mundo que insiste que devemos nos conformar.
Mas por que deveríamos continuar assim? É fundamental que nós, autistas, resgatemos a ideia de que temos valor, que somos seres humanos plenos e não precisamos corresponder às expectativas neurotípicas para termos um espaço legítimo no mundo. Não precisamos mascarar quem somos apenas porque nossa forma de ser é diferente. Não é justo que nos seja exigido renunciar a nossos traços e interesses, contanto que esses não causem mal a ninguém. Esse é o caminho para vivermos melhor e mais livres.
Nos libertar do peso de corresponder a um padrão imposto é um passo em direção ao respeito por nós mesmos. Precisamos resgatar a nossa identidade, ser quem somos sem medo de julgamentos ou olhares estranhos. Precisamos, como autistas, entender que o mundo se torna mais rico com as nossas diferenças, que nossa autenticidade é algo a ser celebrado e não algo a ser suprimido. Afinal, todos ganham quando diferentes modos de viver podem coexistir sem que uns tentem dominar ou “consertar” os outros.
Para que isso seja possível, é essencial que a sociedade repense suas expectativas e abra espaço para que todos possam ser genuínos. Não precisamos ser invisíveis ou moldados para caber em expectativas alheias. O que precisamos é de respeito, de compreensão e, acima de tudo, de liberdade para viver sem máscaras, em toda a nossa complexidade e valor.
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Casado com Janaína e pai do Ulisses. Tutor da Zaira (Chow-Chow) e do Paçoca (hamster). Escritor por hiperfoco e autista de nascença. Membro e presbítero da Igreja REMIDI e missionário pelo PRONASCE. Teólogo, Filósofo e Pedagogo em formação. Especialista em Docência do Ensino Superior e em Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva. Meus autores preferidos são: Agostinho, Kierkegaard, João Wesley, Karl Barth, Bonhoeffer, Tillich, C. S. Lewis, Stott e alguns pais da igreja. Meus hobbys são: ler, assistir filmes e séries.