Ensaios

Senhor, Ensina-me a Usar Minha Doença

“Senhor, como no momento da minha morte, me encontrarei separado do mundo, nu de todas as coisas, apenas diante de vossa Presença, para responder à vossa Justiça por todos os movimentos do meu coração, fazei-me considerar nesta doença como uma espécie de morte, separada do mundo, nua de todos os objetos de meus apegos, somente diante de sua presença para implorar de sua misericórdia a conversão do meu coração; e que eu tenha extrema consolação por Vós” (Blaise Pascal).

Introdução

A fragilidade humana nos confronta com a realidade de nossa dependência de Deus. Para muitos, a doença é um inimigo, algo a ser vencido a qualquer custo. No entanto, para Blaise Pascal, pensador profundamente cristão, a doença é uma oportunidade espiritual. Sua oração acima reflete uma compreensão singular: ele a via como um convite para morrer para o mundo, desapegar-se de tudo e encontrar em Deus a verdadeira consolação.

Esse modo de pensar contrasta profundamente com a mentalidade moderna, mesmo dentro das igrejas, onde a saúde física é muitas vezes tratada como um direito divino inquestionável. A oração de Pascal nos convida a enxergar o sofrimento e a doença sob uma ótica teológica: não como um obstáculo, mas como um meio pelo qual Deus nos molda, nos purifica e manifesta Sua glória.

Neste ensaio, exploraremos a relação entre doença, sofrimento e a vontade de Deus, fundamentando-nos nas Escrituras, na teologia e na filosofia cristã, bem como na experiência pessoal e comunitária de fé.

A Oração de Blaise Pascal e Sua Interpretação

A oração de Blaise Pascal oferece uma visão contracultural sobre a doença. Ele a compara à morte, pois ambas nos separam das distrações do mundo e nos colocam diretamente diante de Deus. Na doença, somos despojados de nossas forças, de nossos planos, e até de nosso senso de controle. Assim como na morte, ela nos lembra que somos frágeis e finitos.

Pascal clama para que a doença seja usada como um instrumento de conversão e dependência total de Deus. Ele não pede a cura, mas a transformação do coração. Para Pascal, o sofrimento não é um fim em si mesmo, mas um meio de sermos consolados em Deus, encontrando n’Ele um bem maior do que qualquer coisa que este mundo pode oferecer.

Esse pensamento está enraizado na visão bíblica. O apóstolo Paulo ecoa essa perspectiva em 2 Coríntios 12:9-10, quando, ao falar do “espinho na carne”, declara: “A minha graça te basta, pois o meu poder se aperfeiçoa na fraqueza.” Paulo aprendeu a gloriar-se nas fraquezas porque nelas Deus se revela plenamente.

O Sofrimento no Plano Redentor de Deus

Na teologia cristã, o sofrimento sempre teve um papel significativo. Desde o Antigo Testamento, vemos Deus usar o sofrimento para moldar e disciplinar Seu povo. Jó, um exemplo clássico, reconheceu a soberania de Deus mesmo em meio à perda e à doença: “O Senhor deu, o Senhor tirou; bendito seja o nome do Senhor” (Jó 1:21).

No Novo Testamento, essa ideia é ampliada em Cristo, que sofreu por nós. A cruz é o maior exemplo de como o sofrimento pode ser redentor. Isaías profetizou sobre o Messias como “homem de dores, que sabe o que é padecer” (Isaías 53:3). Em Sua humanidade, Jesus abraçou o sofrimento como parte do plano do Pai.

Da mesma forma, os cristãos são chamados a participar dos sofrimentos de Cristo (Filipenses 3:10). A doença, muitas vezes, é uma dessas formas de participação. Ela nos lembra que este mundo não é nosso lar definitivo e que somos peregrinos em direção à eternidade.

A Submissão à Vontade de Deus

Orar para que Deus ensine a fazer bom uso da doença é um ato de submissão. Essa postura se opõe à cultura atual, que busca evitar o sofrimento a qualquer custo. A oração de Jesus no Getsêmani é nosso maior exemplo: “Pai, se queres, passa de mim este cálice; contudo, não se faça a minha vontade, mas a tua” (Lucas 22:42).

A verdadeira fé não exige que Deus nos cure, mas confia que Ele sabe o que é melhor para nós e para Sua glória. O apóstolo Paulo, ao enfrentar seu “espinho na carne”, orou três vezes por sua remoção, mas aceitou a resposta de Deus: “A minha graça te basta” (2 Coríntios 12:9).

Essa submissão não é resignação passiva, mas um reconhecimento ativo da soberania de Deus. É a fé que nos permite orar, como Pascal, para que a doença nos leve a uma maior comunhão com Deus.

A Doença Como Testemunho

Além de nos moldar, a doença pode ser uma oportunidade para testemunhar. Muitas vezes, no sofrimento, somos colocados em situações que nos permitem compartilhar a esperança em Cristo. Médicos, enfermeiros e outros pacientes podem se tornar o campo missionário de quem sofre.

Jesus afirmou que o cego de nascença não estava nessa condição por causa de pecado, mas “para que se manifestem nele as obras de Deus” (João 9:3). Essa declaração deve moldar nossa visão sobre o sofrimento. Se vivermos com fidelidade e obediência em meio à dor, nossas vidas podem se tornar reflexos da glória de Deus.

Reflexão Filosófica: Aceitação e Sentido

Na filosofia cristã, Agostinho de Hipona nos ensina que o verdadeiro descanso da alma está em conformar nossa vontade à vontade divina. A aceitação não é uma derrota, mas um triunfo da fé. Blaise Pascal, em seu “Pensées”, argumenta que o sofrimento nos ajuda a reconhecer nossas limitações e nossa necessidade de Deus.

No pensamento contemporâneo, essa visão é frequentemente perdida. A sociedade moderna busca sentido na autossuficiência e na negação da fragilidade humana. Contudo, a fé cristã nos chama a abraçar nossa fragilidade como um caminho para conhecer melhor a Deus e depender d’Ele.

Meu Testemunho

Desde a juventude, enfrento problemas de saúde. Aos 27 anos, ao lidar com um diagnóstico difícil, minha oração não foi por cura imediata, mas para que Deus me ensinasse a usar aquela doença para a glória d’Ele. No hospital, preguei para médicos e enfermeiros, orei por pacientes e testemunhei o amor de Cristo.

Hoje, aos 43 anos, continuo enfrentando desafios físicos. Algumas vezes Deus me curou; outras vezes, Ele escolheu não curar. Mas em todas as situações, Ele me ensinou que minha fraqueza é uma oportunidade para Sua força se manifestar.

Não oro para que Deus me cure a qualquer custo, mas para que Ele me use. Não quero perder o tempo precioso que Ele me dá, seja em saúde ou em doença.

Conclusão

A oração de Blaise Pascal nos desafia a mudar nossa perspectiva sobre o sofrimento. Em vez de vê-lo como um mal absoluto, podemos enxergá-lo como um instrumento divino de transformação. A doença, quando colocada nas mãos de Deus, pode se tornar um meio poderoso de glorificá-Lo.

Como o salmista, nossa oração deve ser: “Ensina-me a fazer a tua vontade, pois tu és o meu Deus; o teu Espírito é bom; guie-me por terra plana” (Salmo 143:10).

Que aprendamos a confiar no Senhor, mesmo em meio à dor, e que nossas vidas sejam usadas para Sua glória, até o dia em que toda lágrima será enxugada e o sofrimento não mais existirá (Apocalipse 21:4).

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Casado com Janaína e pai do Ulisses. Tutor da Zaira (Chow-Chow) e do Paçoca (hamster). Escritor por hiperfoco e autista de nascença. Membro e presbítero da Igreja REMIDI e missionário pelo PRONASCE. Teólogo, Filósofo e Pedagogo em formação. Especialista em Docência do Ensino Superior e em Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva. Meus autores preferidos são: Agostinho, Kierkegaard, João Wesley, Karl Barth, Bonhoeffer, Tillich, C. S. Lewis, Stott e alguns pais da igreja. Meus hobbys são: ler, assistir filmes e séries.

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