A Terra é uma Cumbuca e as Opiniões Descartáveis

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Era uma tarde comum de aula na faculdade quando a frase fatídica escapou da minha boca com a precisão de um bisturi: “Sua opinião não vale nada. A minha também não.” Silêncio. Algumas cabeças se ergueram, outras se abaixaram, como se buscassem abrigo em anotações inexistentes. Mas, entre os vinte e poucos alunos, um rapaz, inflamado pelo heroísmo do subjetivismo, marchou até a diretoria. “O professor disse que minha opinião não tem valor”, bradou. Esqueceu apenas a parte em que eu havia incluído a minha opinião no mesmo esgoto epistemológico.

Assim é a vida moderna: a terra é uma cumbuca. Quem quiser viver na parte plana, vive; quem preferir, se instala confortavelmente na parte redonda. Porque, afinal, “tudo é questão de opinião”. A ciência? Apenas um ponto de vista. A gravidade? Uma imposição do establishment. Os números? Artimanha de quem quer nos controlar. É o triunfo da crença de que o mapa mundi pode ser dobrado para caber dentro do bolso — desde que seja o SEU bolso.

Tenho uma visão romântica (ou talvez patética) do conhecimento. Sempre acreditei que ele fosse um conjunto de janelas para a realidade, não espelhos para as nossas opiniões. Mas vivemos dias difíceis. A opinião tornou-se sagrada. Crítica a ela? Blasfêmia. E quando você ousa sugerir que “sentir” e “achar” não são métodos científicos, imediatamente vira opressor, arrogante, ou, como já fui rotulado, “desrespeitoso”. Porque, em tempos de relativismo triunfante, negar à opinião o mesmo peso de um fato é quase um pecado mortal.

Não me entendam mal. Respeitar o outro é necessário. Respeitar ideias? Nem sempre. Uma ideia ruim, quando alimentada com respeito e igualdade, pode destruir muito mais do que um ego magoado. Pense na medicina. No tempo em que a opinião dizia que doenças eram castigos divinos, tínhamos tratamentos à base de sanguessugas e exorcismos. Quem ousava contrariar? Afinal, “é a minha crença”. Hoje, um remédio precisa de ensaios clínicos rigorosos para provar que funciona — e ainda assim, alguém no YouTube com uma webcam de 1998 e “muitos estudos lidos” será ouvido com a mesma reverência que um prêmio Nobel.

O mesmo vale para religião, política, economia, e até o clima. Tudo é visto como “opinião”. O gelo do Ártico está derretendo? “Na minha opinião, não está.” As vacinas salvaram milhões de vidas? “Na minha visão, são perigosas.” O problema de tratar opiniões como verdades é que a realidade não é um grande restaurante à la carte. Você não escolhe o que é ou deixa de ser verdade com base no seu paladar.

“Cada um tem sua verdade.” Não, não tem. O que cada um possui é uma perspectiva. Uma lente, que pode estar mais ou menos suja. A verdade — seja ela científica, filosófica ou existencial — não se importa com a nossa opinião. Ela está lá, como uma montanha teimosa, enquanto discutimos se ela é alta, baixa ou se sequer existe.

E assim continuamos, flutuando nessa cumbuca, tentando achar sentido em uma sociedade que fez da opinião um totem. Querem que a gente aplauda as certezas pessoais, ainda que elas nos empurrem para o abismo. Querem que aplaudamos a ideia de que “minha opinião vale o mesmo que um estudo científico”. Respeito as pessoas. Mas não me peçam para respeitar o que pode nos matar.

Na próxima vez que alguém gritar “é a minha opinião!”, responderei, com delicadeza: “E ela flutua, claro, como a terra plana onde você preferiu morar.”

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Paulo Freitas

Paulo Freitas

Paulo Freitas é teólogo, filósofo, professor e presbítero. Autista, escreve sobre fé, fragilidade, dor, neurodiversidade e tudo o que nos torna profundamente humanos.

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