
A Simplicidade Esquecida da Identidade Cristã
A pergunta “Quem sou eu?” ecoa com força não apenas nos corredores da filosofia, mas também nos púlpitos, nos grupos de discipulado e nos corações dos cristãos de todas as idades. No entanto, quando a interrogação é ampliada para “Quem sou eu em Cristo?”, o eco parece mais confuso do que revelador. A cada nova geração, a busca por identidade espiritual ressurge como se fosse uma novidade, e as gerações anteriores, embora já tenham feito essa pergunta, permanecem atentas, temerosas de terem perdido algo essencial no caminho.
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Por que, afinal, continuamos sem uma resposta definitiva? A resposta, ouso dizer, não está na complexidade do tema, mas na recusa voluntária de aceitar a simplicidade com que a Escritura o apresenta. Rejeitamos a resposta simples porque ela exige renúncia — e não de bens ou status, mas de ilusões. Preferimos construir labirintos teológicos, identitários e até emocionais, ao invés de encarar a verdade nua e crua de que somos chamados a ser filhos, discípulos e servos.
Este tripé identitário — filho, discípulo, servo — é o círculo virtuoso que sustenta toda a vida cristã. Em Cristo, somos adotados como filhos (Jo 1.12; Rm 8.15-17), chamados ao discipulado (Lc 9.23; Mt 28.19-20), e enviados como servos (Jo 13.13-17; Fp 2.5-7). Essas três dimensões não se anulam, mas se completam, se alimentam e se equilibram. Ser apenas filho sem se tornar discípulo leva ao mimetismo religioso. Ser discípulo sem se entender como servo gera orgulho espiritual. Ser servo sem a consciência de filho gera legalismo e cansaço. Mas viver os três é viver o Evangelho.

O que atrapalha nossa percepção dessa simplicidade? Kierkegaard tem uma resposta penetrante: “A maior forma de desespero é não ser você mesmo diante dos outros.” E esse é o nosso drama: não queremos ser quem realmente somos em Cristo, porque isso nos desestabiliza. Requer autenticidade, requer morrer para a aparência, para o ego religioso, para a cultura do desempenho. E por isso nos agarramos à religião como performance, ao trabalho como sentido, à fama como substituto de valor. Deus, assim, se torna coadjuvante, um trampolim para nossos projetos, e não o fundamento de nossa identidade.
Como os doutores da Lei, buscamos rodeios para a verdade. Preferimos perguntar quem é o próximo a simplesmente sermos o próximo. Como o jovem rico, nos angustiamos diante da simplicidade radical de Jesus: “Vende tudo o que tens e segue-me.” Temos tanto — opiniões, teologias preferidas, títulos, posses, expectativas — que sair tristes parece mais conveniente do que deixar tudo.
E assim, nossa espiritualidade se torna um sintoma do desespero que nos afasta de nós mesmos e do nosso chamado. Nos escondemos atrás de cargos, ministérios, frases de efeito, lifestyle gospel, ativismo piedoso — e continuamos vazios. Desesperados.
É hora de retornar ao Evangelho sem adornos. De aceitar a resposta que não emociona multidões, mas transforma a alma: somos filhos, discípulos e servos. Nossa identidade não é um quebra-cabeça esotérico. É um chamado para viver como irmãos em fraternidade, como aprendizes na escola de Cristo e como servos uns dos outros com amor. Isso basta. Isso é tudo. E, se isso não for suficiente, talvez o problema não esteja na resposta — mas naquilo que nos recusamos a perder.
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