A Odisseia de Um Autista com a Saúde Bucal

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Tudo que diz respeito à dentição sempre foi muito difícil para mim. Desde criança (e sendo autista sem saber), a escovação era um verdadeiro suplício: o simples toque das cerdas nos meus dentes provocava uma dor intensa, quase inexplicável. Por isso, eu simplesmente não escovava. O resultado não tardou a aparecer — uma infância marcada por cáries, dores agudas e um tratamento precoce de canal. Era comum que meus dentes doessem ao menor estímulo, e os problemas bucais me acompanharam até cerca dos 25 anos, com múltiplos canais ao longo do caminho.

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Com o tempo, fui desenvolvendo estratégias de sobrevivência: descobri escovas mais macias, aprendi a tolerar o uso do fio dental e a importância da higiene bucal, mesmo que o processo em si fosse sempre uma batalha contra a hipersensibilidade. O uso do aparelho ortodôntico foi um divisor de águas — corrigiu não apenas meus dentes tortos, mas também melhorou minha dicção. Curiosamente, o aparelho foi um dos poucos procedimentos que não me causaram dor.

Ir ao dentista nunca me assustou — já enfrentei até canal sem anestesia. O dentista estranhou, mas para mim era apenas mais uma dor entre tantas. Ainda assim, cada consulta exige um esforço físico e emocional gigantesco. Volto para casa exausto, como se tivesse enfrentado uma maratona. Para quem está fora do espectro autista, pode parecer exagero. Para nós, é o cotidiano.

O cuidado com a dentição é um dos aspectos mais negligenciados quando se fala de saúde da pessoa autista. Muitos de nós enfrentam hipersensibilidades orais, dificuldades com rotinas e um desgaste emocional profundo em procedimentos odontológicos. No entanto, são poucos os profissionais que compreendem essas particularidades, e menos ainda os que se adaptam a elas.

Falar sobre isso é também reivindicar empatia e compreensão. Não somos “preguiçosos”, “desleixados” ou “medrosos”. Somos sensíveis, no mais profundo sentido da palavra. E cuidar da nossa saúde bucal exige mais do que força de vontade — exige acolhimento, paciência e uma escuta verdadeira às nossas dores.

Este não é apenas um relato pessoal. É um apelo. Que dentistas, cuidadores e familiares compreendam que, para autistas, a boca é território sagrado e muitas vezes doloroso. Que sejamos tratados com o respeito que qualquer dor — mesmo invisível — merece.

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Paulo Freitas

Paulo Freitas

Paulo Freitas é teólogo, filósofo, professor e presbítero. Autista, escreve sobre fé, fragilidade, dor, neurodiversidade e tudo o que nos torna profundamente humanos.

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