A imagem mostra uma cena subaquática profundamente simbólica e poética: no fundo do mar, repousa uma concha gigante, de aparência realista, com texturas naturais e tons terrosos. Dentro dela, há uma pessoa nua em posição fetal, com o corpo curvado e os braços envolvendo os joelhos, como se buscasse proteção ou consolo. A luz do sol filtra suavemente pela superfície da água, criando um ambiente sereno, silencioso e melancólico. O fundo é de areia clara, sem distrações, reforçando a sensação de isolamento, introspecção e reclusão. A imagem evoca fortemente a ideia de vulnerabilidade, refúgio e esquecimento — uma metáfora visual poderosa da vida de pessoas com deficiência ou em situações de invisibilidade social.
Neurodiversidade,  Saúde

A Concha, o Corpo e o Silêncio: Crônica para os Esquecidos do Mar da Deficiência

“As pessoas se esquecem das criaturas que vivem dentro das conchas”1.
A frase passou pelo filme como o vento que atravessa uma cortina leve — quase imperceptível, mas suficiente para causar um estremecer na alma. E ficou. Não como uma lembrança, mas como uma ferida aberta. Uma sentença silenciosa escrita nas paredes úmidas das casas onde moram aqueles que não aparecem, aqueles que não performam, aqueles que não são lembrados porque não conseguem ser vistos.

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A concha é metáfora, mas também é matéria. Ela é forma, mas sobretudo é existência. Para muitos de nós, ela não é um invólucro descartável. É carne, é mente, é abrigo e é prisão. Vivemos nela como os caracóis do fundo do mar: lentamente, respirando como quem teme incomodar, tentando existir sem fazer alarde. A concha não é nossa escolha. É nosso corpo. E, se você quiser nos amar, vai ter que aprender a amar também nossa concha — com suas curvas, suas limitações, seu silêncio.

Fala-se muito de inclusão. Há campanhas, cartilhas, hashtags, datas comemorativas. Mas inclusão sem presença é marketing. Inclusão sem escuta é espetáculo. Inclusão sem convivência é um quadro bonito pendurado na parede do ativismo vazio. E é aí que mora o drama — e o cansaço — de quem vive recluso em sua concha: somos lembrados apenas como símbolo, raramente como pessoa. Fala-se sobre nós, mas não conosco. Observam nossas conchas com curiosidade de museu, mas ignoram a criatura viva que pulsa por dentro.

Existe algo que só quem habita uma concha sabe: o som do mundo lá fora chega abafado. E não é só o som. Chegam abafados também os afetos, os convites, as oportunidades. E, quando alguém se aproxima, é comum que o faça com pressa, tentando arrombar a concha com ferramentas rudes — a piedade agressiva, o conselho automático, a exigência de superação. “Reaja!”, dizem. “Você precisa sair dessa.” Como se sair fosse fácil. Como se sair não fosse, muitas vezes, um desmanchar de si. Como se sair fosse possível sem morrer um pouco no processo.

Mas o pior não é isso. O pior é o abandono disfarçado de otimismo. Aquele que diz: “Tudo vai dar certo”, e some. Aquele que prefere acreditar que nossa ausência é escolha, que nosso silêncio é opção, que nossa concha é um capricho. Porque assim é mais fácil não fazer nada. Porque assim não dói tanto.

Eu sempre digo: não tente abrir a concha. Você não está preparado para o que há dentro. E talvez, se tentar, machuque mais do que ajude. Não precisamos que nos arranquem da concha. Precisamos que nos visitem. Que aceitem tomar um café com a gente ali, na beiradinha do abrigo. Que falem baixo, devagar, e fiquem um tempo em silêncio também. Porque há momentos em que as palavras não cabem. Em que a presença, mesmo muda, é bálsamo.

Muitos não entendem, mas há uma linguagem própria dentro das conchas. É feita de olhares, de gestos mínimos, de esperas longas. É uma linguagem que dispensa pressa e exige ternura. E há algo que só quem tem uma concha conhece de verdade: o outro que também a carrega. Por isso, há uma intimidade quase mística entre pessoas com deficiência que vivem reclusas. É como se soubéssemos, sem dizer, onde dói no outro. É como se nossas conchas se reconhecessem no silêncio.

Não buscamos aplausos. Buscamos olhos que vejam. Não queremos holofotes. Queremos presença. Não precisamos que o mundo nos veja. Precisamos que nos vejam os nossos. Os que dizemos amar, os que chamamos de amigos, os que estão por perto, mas ainda não aprenderam a sentar conosco na sombra da concha.

No fundo, não queremos sair de onde estamos à força. Queremos que alguém nos alcance onde estamos com respeito e paciência. Queremos que alguém diga: “Eu vejo você.” E que diga isso não com palavras de efeito, mas com atitudes cotidianas: uma visita, uma mensagem, um abraço sem pressa, um convite que respeita o tempo do outro. Porque a verdadeira inclusão não é um palco, é uma mesa posta. Um lugar reservado com nome. Um espaço onde a concha é bem-vinda.

Enquanto escrevo, ouço de novo aquela frase. “As pessoas se esquecem das criaturas que vivem dentro das conchas.”
E percebo: talvez esta crônica seja minha forma de deixar um sinal no mar. Uma garrafa lançada pelas mãos de quem vive em concha para quem ainda tem ouvidos e olhos de ternura. Uma súplica, um manifesto, um poema.
Porque a criatura que vive dentro da concha também ama. Também sonha. Também espera.
E, sobretudo, também vive.

  1. Filme: Um lugar longe daqui (Netflix) ↩︎

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Casado com Janaína e pai do Ulisses. Tutor da Zaira (Chow-Chow) e do Paçoca (hamster). Escritor por hiperfoco e autista de nascença. Membro e presbítero da Igreja REMIDI e missionário pelo PRONASCE. Teólogo, Filósofo e Pedagogo em formação. Especialista em Docência do Ensino Superior e em Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva. Meus autores preferidos são: Agostinho, Kierkegaard, João Wesley, Karl Barth, Bonhoeffer, Tillich, C. S. Lewis, Stott e alguns pais da igreja. Meus hobbys são: ler, assistir filmes e séries.

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