A imagem mostra uma pessoa em uma cadeira de rodas posicionada na base de uma longa escadaria em frente a uma igreja de pedra de estilo gótico. A escadaria leva a uma grande porta de madeira, mas não há nenhuma rampa visível para acessibilidade. A pessoa parece estar olhando para cima, em direção à porta fechada da igreja, transmitindo um sentimento de exclusão ou inatingibilidade. A cena sugere uma crítica visual à falta de acessibilidade em templos religiosos ou espaços públicos, levantando questões sobre inclusão e barreiras arquitetônicas enfrentadas por pessoas com deficiência.
Teologia da Deficiência

Igreja, Deficiência e o Grito Silenciado – 1

Parte 1 – O Deus que vê: perguntas que esquecemos de fazer

Há um silêncio nas igrejas. Um silêncio que ecoa mais alto do que o som dos instrumentos, mais denso do que a mais fervorosa oração. É o silêncio que envolve as vidas de pessoas com deficiência que frequentam (ou foram afastadas de) nossas comunidades cristãs. Um silêncio produzido não pela ausência de palavras, mas pela ausência de escuta. Não pela falta de ações, mas pela falta de presença real. E talvez a melhor forma de romper esse silêncio seja começar com três perguntas incômodas, mas urgentemente necessárias:

  1. A nossa teologia reconhece a deficiência como parte da diversidade humana ou a vê apenas como algo a ser curado ou consertado?
  2. As pessoas com deficiência têm voz ativa nas decisões da igreja ou apenas são “alvo” de ações inclusivas?
  3. Estamos preparados para ouvir e aprender com as experiências espirituais de pessoas com deficiência, ou só queremos ensiná-las?

I. O problema é o olhar: deficiência como “pecado disfarçado”

Ainda há, infelizmente, uma teologia difusa e não questionada que liga diretamente a deficiência à ideia de punição, maldição ou falha espiritual. É uma teologia implícita, não proclamada nos púlpitos, mas sussurrada nos olhares, reforçada na ausência de representatividade, disfarçada em orações por “cura” que, muitas vezes, não são movidas por compaixão, mas por incômodo. É a tentativa desesperada de manter um Deus que nos agrade, um Deus que abençoa com saúde, força e produtividade — o Deus do utilitarismo religioso, não o Deus crucificado.

Cristo, porém, nos confronta com outra lógica. O relato do cego de nascença em João 9 é devastadoramente direto:

“Mestre, quem pecou, este ou seus pais, para que nascesse cego?”
“Nem ele pecou nem seus pais; mas foi para que se manifestem nele as obras de Deus.” (João 9:2-3)

Jesus rasga o véu do pensamento religioso daquela época — e o nosso também. Ele não vê o cego como um problema a ser resolvido, mas como um lugar onde Deus habita. A pergunta dos discípulos parte de uma teologia da culpa. A resposta de Jesus inaugura uma teologia da presença.

E aqui me coloco: como alguém que vive com deficiência, como alguém que sabe o que é ter o corpo cansado pela dor da fibromialgia, o espírito pressionado pela exclusão e o coração frequentemente mal interpretado, digo: o problema não está no corpo com limitações, mas na teologia limitada que reduz a vida ao desempenho, a espiritualidade ao sucesso e a salvação ao ideal normativo de perfeição física.

II. Teologia do controle x Teologia do encontro

Grande parte das igrejas adotou uma teologia do controle, travestida de ortodoxia. Tentamos explicar Deus, definir Deus, defender Deus, como se Ele estivesse ameaçado pelas fragilidades humanas. Assim, quando uma pessoa com deficiência entra pela porta da igreja, ela não é acolhida como portadora da imagem de Deus, mas como um projeto inacabado, uma falha técnica que precisa ser “consertada pela fé”.

Essa é uma herança gnóstica, que separa corpo e espírito, como se o corpo limitado contradissesse a imagem divina. Mas o corpo de Cristo crucificado nos diz outra coisa: a glória de Deus se revela na carne marcada, nos pés feridos, nas mãos atravessadas, na dor que redime sem precisar apagar o sofrimento.

Aqui, lembro de Kierkegaard, que fala da angústia como a expressão mais profunda da existência humana diante da liberdade e da responsabilidade. E o que é a deficiência, senão uma forma de existência que carrega, dia após dia, o peso da vulnerabilidade diante de um mundo que idolatra o desempenho? E, no entanto, é exatamente nessa condição que muitos de nós aprendemos a depender radicalmente da graça.

A deficiência não é um erro no sistema. É um convite ao amor encarnado, ao encontro real, ao quebrantamento que cura não por força, mas por presença.

III. Inclusão que silencia: quem está na mesa de decisões?

A igreja é, por definição, o corpo de Cristo. Mas, quando falamos de inclusão, geralmente pensamos em “dar um lugar” no banco, e não um lugar na mesa das decisões. As pessoas com deficiência são vistas como destinatárias da missão, não como sujeitos missionários. Como receptoras de bênçãos, não como anunciadoras. Como aquelas a quem pregamos, não como aquelas de quem aprendemos.

Mas o Espírito Santo sopra onde quer, e Ele não respeita os critérios estéticos, motores ou cognitivos das nossas estruturas. Pessoas com deficiência também foram cheias do Espírito no Pentecostes. Elas também têm dons, ministérios e chamado. E talvez o maior pecado da igreja moderna seja o de enterrar esses dons por puro capacitismo espiritual.

O apóstolo Paulo, que viveu com um “espinho na carne” que nunca foi retirado, nos lembra que o poder de Deus se aperfeiçoa na fraqueza (2 Coríntios 12:9). E se a fraqueza é o lugar da potência de Deus, por que ainda organizamos nossas igrejas com base no desempenho, na produtividade e na retórica da normalidade?

A deficiência, nesse sentido, não é obstáculo ao serviço cristão — ela é uma forma legítima de existência e revelação do Evangelho. Ou, como diria Bonhoeffer, “não há comunhão verdadeira senão na aceitação radical do outro como ele é”.

IV. A escuta como ato espiritual

É preciso ir além da pergunta: “O que podemos fazer por vocês?” E começar a perguntar: “O que vocês têm a nos ensinar sobre Deus?”
Escutar a espiritualidade de pessoas com deficiência é mergulhar em um outro modo de ser no mundo — mais sensível, mais profundo, mais livre das ilusões do desempenho e do heroísmo.

Na prática, isso significa incluir essas vozes nas pregações, nos conselhos, nos ministérios. Significa deixar que pessoas com deficiência nos conduzam em oração, nos desafiem com sua interpretação da Bíblia, nos abalem com suas dores, nos curem com sua fé.

Conclusão

Não é possível falar de Cristo sem falar de inclusão. Mas não uma inclusão superficial, que acomoda sem integrar, que tolera sem ouvir, que recebe sem realmente abraçar.
É hora de rever a nossa teologia. É hora de perguntar se o nosso Cristo é realmente o Cristo dos Evangelhos — aquele que tocava os intocáveis, que ouvia os silenciados, que se identificou com os fracos — ou se temos pregado um ídolo que exige perfeição e condena o diferente.

Talvez, como igreja, estejamos precisando de um milagre. Não o milagre da cura de quem tem deficiência. Mas o milagre da cura da nossa arrogância espiritual.

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Casado com Janaína e pai do Ulisses. Tutor da Zaira (Chow-Chow) e do Paçoca (hamster). Escritor por hiperfoco e autista de nascença. Membro e presbítero da Igreja REMIDI e missionário pelo PRONASCE. Teólogo, Filósofo e Pedagogo em formação. Especialista em Docência do Ensino Superior e em Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva. Meus autores preferidos são: Agostinho, Kierkegaard, João Wesley, Karl Barth, Bonhoeffer, Tillich, C. S. Lewis, Stott e alguns pais da igreja. Meus hobbys são: ler, assistir filmes e séries.

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