
Sobre o Corpo, os Membros e o Amor Que se Faz Carne
Há quem pense que amar seja verbo de assento macio, que se conjuga em discursos, abraços frouxos e promessas lançadas ao vento. Mas há um amor que é verbo de chão, de calo nas mãos, de mesa posta, de escuta atenta. Amor que não se limita a dizer “você é bem-vindo”, mas que se traduz em “aqui está seu lugar.”
No Corpo, há muitos membros, dizia Paulo, o apóstolo. E cada um com sua função, seu compasso, sua cadência. O problema é que nem sempre o Corpo lembra que nem todo pé corre, nem toda mão toca, nem todo olho vê da mesma maneira. Às vezes, esquecemos que há membros que se comunicam por outros caminhos, que sentem o mundo em outra frequência, que dançam em outro ritmo.
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Foi num desses encontros, da minha igreja, chamados “acampamento” — onde todos parecem encontrar prazer no barulho, na correria e na algazarra — que eu, parte desse Corpo, me senti, muitas vezes, como membro deslocado. Não por falta de amor declarado, mas porque o amor, se não se faz gesto, permanece discurso.
Cansa tentar caber onde não se cabe. É como vestir uma roupa bonita, mas dois números menor. Já tentei me enfiar nas brincadeiras, nas rodas, nos gritos, nas dinâmicas — e saí de lá não apenas exausto, mas partido por dentro. Porque o que sobrecarrega não é só o som, nem só a confusão; é a solidão de estar rodeado de gente, mas não ser entendido.
Mas eis que, naquele sábado, depois do pão partilhado no almoço, partiu-se também outra espécie de pão: o pão da escuta. Alguém teve uma ideia simples, mas profundamente encarnada no Evangelho: “Vamos chamar o Paulo pra uma roda de perguntas. Perguntar sobre Bíblia, sobre Teologia… Ele gosta disso.”
E, como quem descobre uma linguagem esquecida, ali me encontrei. A mesa virou púlpito, virou ágora, virou sala de aula, virou santuário. Durante quase três horas, eles me ouviram. Perguntaram, riram, anotaram, se admiraram, aprenderam — e, acima de tudo, me abraçaram do jeito que sei ser abraçado: com palavras, reflexões, trocas profundas. E eu, que tantas vezes caminho à margem, fui colocado no centro, não como exceção, mas como expressão legítima do amor comunitário.
Não houve esforço para me mudar, nem tentaram me ajustar ao molde dos outros. Houve apenas um movimento singelo e santo: ajustar a comunhão para que eu coubesse nela sem deixar de ser quem sou.
Na manhã seguinte, acordei de ressaca social — essa velha conhecida de quem carrega uma mente neurodivergente. Mas era uma ressaca doce. Um cansaço que não fere, porque é fruto de algo bom. E, entre o peso nas pálpebras e a leveza na alma, eu soube: “Sim, eu pertenço. Eu sou parte viva desse Corpo.”
E se é verdade que há mais felicidade em dar do que em receber, naquele dia todos deram e todos receberam. Eles me deram espaço, escuta e presença. Eu lhes dei o que carrego de melhor: saber, reflexão, amor à Palavra. E assim se cumpriu o mandamento mais difícil de todos: “Amai-vos uns aos outros como Eu vos amei.”
Porque amar não é só convidar alguém pra roda. Amar é perguntar: “De que roda você gosta? Onde você sente que pode ser inteiro?”
E então, fazer espaço.
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