
A Era do Eu Inchado: Identidade Inflada e a Vacuidade do Ser
Vivemos uma era marcada por um fenômeno alarmante: a substituição da identidade por uma performance. Em nome da liberdade, cultivamos múltiplos “eus”, montados como colagens frágeis e provisórias, sustentadas por gostos, pertenças tribais e afiliações emocionais. A identidade tornou-se uma fantasia inflada — e o ser humano, uma caricatura de si mesmo.
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Chamo isso de a era do eu inchado — não apenas porque as pessoas estão cansadas, como diagnosticou Byung-Chul Han, ou líquidas, como disse Bauman, mas porque estão transbordando de versões de si mesmas que não são reais. Somos inchados de informações, de imagens, de estímulos, de micropertencimentos, mas vazios de sentido, de essência, de raiz.
Essa vacuidade profunda se manifesta de modos diversos. O caso dos therians é um sintoma simbólico extremo desse deslocamento da identidade. São jovens — em sua maioria — que se identificam como animais, se comportam, caminham e se alimentam como tais. Não se trata de uma brincadeira inocente, mas de um grito silencioso: o humano tornou-se insuportável. Identificar-se como animal é, paradoxalmente, um protesto contra uma humanidade que perdeu seu chão. A criatura, sem vínculo com o Criador, precisa reconstruir-se em outras formas — mesmo que isso signifique abdicar da dignidade humana.
E antes que se pense que isso é apenas “coisa de jovem confuso”, vale olhar ao redor. Homens de 40 anos se recusam a amadurecer, presos a consoles de videogame, action figures, hobbies caríssimos que servem como anestésico existencial. Não há problema algum no entretenimento — o problema é quando ele ocupa o lugar da responsabilidade, da espiritualidade, da alteridade. O vazio é preenchido com plástico, com fantasia, com consumo.
Mulheres, por sua vez, frequentemente imersas em uma cultura que lhes cobra perfeição estética, mergulham em rituais de beleza que ultrapassam o cuidado próprio e tornam-se verdadeiras liturgias da imagem. Cuidam de bonecas como se fossem filhos, chamam seus animais de “filhos” e a si mesmas de “mães de pet”. Trata-se de uma reconfiguração do afeto, onde o vínculo humano é evitado, substituído por relações onde não há risco, frustração ou conflito — mas também não há verdadeira alteridade.
Essa lógica do autoengano reconfortante se estende ao futebol, à política, à religião. Há pessoas que se tornam torcedores a ponto de abandonarem famílias para ir a jogos, gastarem fortunas em times, brigarem, agredirem, se odiarem por cores e símbolos. Há quem sacrifique amizades e relações de décadas por ideologias políticas, transformando políticos em ídolos, e sua opinião em dogma.
Na esfera religiosa, o panorama é ainda mais grave. O ministério eclesiástico, que deveria ser serviço, tornou-se palco de uma busca por status, sucesso, reconhecimento e autoridade. O altar virou vitrine; o púlpito, palanque. Há líderes dispostos a tudo — inclusive manipulação emocional, abandono da família, destruição de comunidades — para manter a fachada de “ministério próspero”. Como se Deus fosse um meio para o sucesso, e não o fim último da existência.
O que está em jogo aqui não é apenas comportamento. É a ontologia. O ser humano perdeu o norte de si mesmo. O “eu” moderno já não é formado pelo encontro com o outro, pelo vínculo com a verdade, pelo chamado divino. Ele é construído a partir do desejo, da emoção e do consumo. Somos aquilo que sentimos ser, aquilo que desejamos parecer, aquilo que seguimos nas redes. Mas tudo isso é um castelo de vento.
O problema central não é diagnóstico — embora haja casos clínicos reais que merecem atenção profissional — mas existencial. O homem moderno sofre de normose identitária: um transtorno coletivo onde o anormal virou norma. Tudo é válido, desde que autenticamente sentido. A subjetividade tornou-se um dogma, e a realidade, um detalhe incômodo.
A teologia cristã oferece uma visão radicalmente distinta. O ser humano não é um projeto autodefinido, mas uma criatura vocacionada. É chamado por Deus, nomeado por Ele, e só encontra descanso quando responde a esse chamado. Toda identidade que se constrói fora desse encontro é, no máximo, uma fantasia bem produzida. O Evangelho nos lembra que quem quer encontrar sua vida, perderá; mas quem perde sua vida por amor a Cristo, a encontrará (Mt 16:25).
A psicologia profunda, por sua vez, alerta que o “eu” inflado é, muitas vezes, uma defesa contra o “eu” ferido. Em vez de enfrentarmos a dor, a falta, o vazio, cobrimos tudo com performance. Mas o inconsciente não é domesticado por slogans: ele continuará gritando.
A filosofia nos provoca a buscar o ser, e não o parecer. A autenticidade não se encontra na multiplicação de desejos, mas na escuta profunda do que nos constitui. O “conhece-te a ti mesmo” socrático se torna um chamado urgente: ou descobrimos quem somos realmente, ou viveremos para sempre escravizados por versões superficiais de nós mesmos.
Este é o mal-estar da nossa época. Uma civilização cheia de identidades e carente de identidade. Inchada de “eus” e vazia de essência. Mais do que cansados, estamos desconectados. E talvez o maior milagre hoje seja simplesmente reencontrar o caminho para dentro de si — não através da autoafirmação, mas do arrependimento, da humildade e da escuta do Eterno.
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