A imagem retrata uma cena cósmica e profundamente simbólica. No centro, uma luz radiante e vertical irrompe como uma manifestação divina, representando Deus em forma de pura luz. Ao redor dessa luz central, uma pauta musical em forma de infinito flutua, com notas musicais brilhantes se espalhando pelo espaço estrelado, sugerindo harmonia eterna e transcendência. No chão nebuloso, dezenas de silhuetas humanas dançam com os braços erguidos, em total liberdade e sintonia com a música cósmica. Cada figura parece conectada ao universo, à luz e à própria existência, compondo uma coreografia espiritual. A imagem evoca uma visão teológica e filosófica da dança como expressão de fé, pensamento e comunhão com o divino, numa estética que une o poético ao sagrado.
Filosofia

A Filosofia do Dançar Como Ato de Fé e Liberdade

Quando falamos em dançar dentro do meio cristão, a palavra escorrega por entre dedos teológicos como se carregasse o peso de uma culpa ancestral. Ela é rapidamente sufocada por olhares austeros e interpretações que, de tão fechadas, tornaram o corpo uma prisão ao invés de expressão. Em muitas tradições cristãs, tudo aquilo que pulsa no corpo é prontamente classificado como carnal, impuro, indigno. A dança, por ser movimento e pulsação, por carregar ritmo, graça e alegria, foi por muito tempo julgada como algo mundano, quase demoníaco. Como se Deus fosse estático, imóvel, preso a um trono de mármore onde os sorrisos morrem e os pés nunca saem do chão.

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Porém, dançar é mais do que mover o corpo. Dançar é uma epistemologia sensível da existência. É saber com o corpo, pensar com os músculos, sentir com os ossos. E se há algo que os cristãos deveriam compreender é que o corpo também é palavra, também é imagem e semelhança de Deus — não como prisão, mas como possibilidade. “O Verbo se fez carne”, nos lembra o Evangelho, mas a teologia que esvaziou a carne do sagrado esqueceu-se de dançar essa encarnação.

A dança como metáfora do pensar encontra em Nietzsche um de seus maiores defensores. O filósofo que muitos cristãos temem — talvez por desconhecimento ou por preguiça — dizia: “Eu só acreditaria num Deus que soubesse dançar” (Assim falou Zaratustra). Esta frase é um soco poético, uma ironia divina. Nietzsche não rejeita Deus em si, mas rejeita o deus morto, estático, o deus imóvel e sisudo dos religiosos que não riem, não brincam, não celebram, não dançam. O deus que Nietzsche não aceitou era aquele aprisionado pelos cristãos que haviam esquecido a liberdade que a fé implica.

Na dança, Nietzsche via rebelião. Via liberdade. Via o contrário da doutrina que escraviza. Para ele, “perdido seja para nós aquele dia em que não se dançou nem uma vez!”. A vida sem dança é vida que não se move, que não se reinventa. E não dançar, para Nietzsche, era mais do que não mover os pés — era não rir, não pensar livremente, não amar sem medo. Era não viver.

É precisamente isso que nos falta na teologia contemporânea: um pensamento que saiba dançar. Porque dançar, como dizia Nietzsche, é também com ideias, com palavras, com a caneta. E aqui, a dança se torna ato estético, epistêmico e ético. Filosofar é dançar com conceitos. Crer, se bem compreendido, também. A fé que não dança é uma fé morta, endurecida em dogmas que não respiram, doutrinas que não escutam, normas que não fluem. Márcia Tiburi nos aponta: “Na dança o corpo pensa, na filosofia o pensamento dança.” Eis a síntese: o corpo como pensamento e o pensamento como movimento.

A teologia que teme a dança, teme a liberdade. E talvez por isso muitos cristãos não consigam ver o Deus que dança desde a eternidade. O Deus que criou os astros com ritmo, que ordenou os mares com harmonia, que se revela em uma coreografia cósmica onde tudo está em movimento: o universo dança. A criação é uma sinfonia dançante de partículas e possibilidades.

E quando os cristãos se esquecem de dançar, esquecem também de voar. Nietzsche adverte: “Aquele que quer aprender a voar um dia precisa primeiro aprender a ficar de pé, caminhar, correr, escalar e dançar; ninguém consegue voar só aprendendo voo.” A dança é o caminho para a liberdade. E liberdade é o solo fértil da fé.

Fé que não se arrisca, que não se lança na beira do abismo, que não se move com o Espírito, é fé que não sabe dançar. Por isso Nietzsche também disse: “Ter fé é dançar na beira do abismo.” E há poesia aí, mas também uma dura crítica: o cristão que teme a dança teme o risco. Teme a graça, porque prefere a lei. Teme o Espírito, porque prefere a ordem. Teme a encarnação, porque prefere a abstração.

Emma Goldman, ativista revolucionária, afirmou certa vez: “Se não posso dançar, não é minha revolução.” E talvez devêssemos perguntar: se não se pode dançar na fé, que fé é essa? Que evangelho é esse que não celebra com o corpo, que não se alegra com os pés, que não se entrega ao ritmo da graça?

A dança é protesto e louvor. É liberdade em forma de gesto. É o corpo dizendo aquilo que a mente cala, é o espírito se revelando além da linguagem. Quando Davi dançou diante da arca da aliança, dançou despido de vaidades, dançou contra os olhares da decência, dançou diante de um Deus que se move. E mesmo quando foi julgado por Mical, ele respondeu com liberdade: “Diante do Senhor, que me escolheu… ainda mais me humilharei, e me rebaixarei aos meus próprios olhos.” (2 Samuel 6:21-22).

Dançar é crer com os pés. É amar com os joelhos. É orar com os quadris. É viver com o corpo inteiro. E para isso é preciso libertar o corpo do medo, do julgamento, da repressão. É preciso devolver ao corpo seu lugar na espiritualidade. Porque quem não dança, não voa. E quem não voa, não crê.

A dança, portanto, não é mundana — é divina. É o gesto da criação em movimento. É o sagrado se derramando no espaço e no tempo. É o riso de Deus nas dobras do universo. Quem dança, ora. Quem dança, ama. Quem dança, crê.

E talvez, só talvez, quando os cristãos aprenderem a dançar novamente, Nietzsche enfim possa ver, mesmo que tardiamente, o Deus que dança. E rir com Ele. E crer Nele. Porque o Deus da cruz também dançou no princípio. E dançará no fim.

Até que tudo em nós aprenda a voar.

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Casado com Janaína e pai do Ulisses. Tutor da Zaira (Chow-Chow) e do Paçoca (hamster). Escritor por hiperfoco e autista de nascença. Membro e presbítero da Igreja REMIDI e missionário pelo PRONASCE. Teólogo, Filósofo e Pedagogo em formação. Especialista em Docência do Ensino Superior e em Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva. Meus autores preferidos são: Agostinho, Kierkegaard, João Wesley, Karl Barth, Bonhoeffer, Tillich, C. S. Lewis, Stott e alguns pais da igreja. Meus hobbys são: ler, assistir filmes e séries.

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