
Uma Teologia do Assombro e Outras Assombrações
Sempre achei curioso — e, confesso, divertido — como certos medos atravessam os séculos intactos. Desde criança, filmes de terror me pareceram uma deliciosa mistura de drama e comédia, com pitadas generosas de suspense e aquele arrepio na espinha que, paradoxalmente, nos faz sentir vivos. Enquanto uns correm para a luz, eu me sentava confortavelmente na penumbra da sala, rindo e me assustando com fantasmas, monstros e demônios de papelão. E de algum modo, desde ali, já construía minha teologia, mesmo sem me dar conta disso.
Leia também: De Onde Vem Minha Teologia
O curioso, no entanto, é que enquanto eu me divertia, muitos irmãos e irmãs na fé torciam o nariz. “Cuidado, isso é porta para maldição!”, diziam com olhos arregalados. E eu, ali, refletindo… se é verdade que o terror abre portais, talvez abra apenas o portal do inconsciente, como bem explicaria a psicanálise: nada mais que a manifestação da pulsão de morte, esse irmão sombrio da pulsão de vida, que nos ajuda a não enlouquecer, justamente porque nomeia os terrores que insistimos em ignorar.
Mas convenhamos: esse negócio de temer o sobrenatural não nasceu com Hollywood, nem com Stephen King, nem com a Netflix. É coisa muito, muito antiga. Pintaram o diabo de vermelho, enfeitaram-no com rabo, chifres, tridente e olhos flamejantes. Deram-lhe poderes tão colossais que, sinceramente, fico me perguntando como é possível que ele nunca tenha, de fato, dominado o mundo — ou será que já o domina, mas de uma forma bem diferente da que imaginaram? Vai saber.
A Bíblia, claro, não ficou de fora dessa tradição do assombro. Há nela episódios dignos de qualquer roteiro de terror psicológico. Lembram-se de Saul? Pois é, o rei em crise existencial, decadente, desesperado, resolve procurar uma médium — algo explicitamente proibido. E por quê? Porque queria falar com Samuel… morto. E não é que Samuel — ou algo que ele julgou ser Samuel — realmente aparece? Quem lê, treme, duvida, questiona. Foi Samuel? Foi um engano? Uma alucinação coletiva? Uma fraude bem feita da médium? A Escritura, não responde. Deixa no ar, como boa literatura apocalíptica (ou de terror) faz.
Aliás, falando em aparições, uma das minhas cenas favoritas do Novo Testamento é quase cômica. Imagine: noite, lago, os discípulos exaustos, com o barco sendo chicoteado pelos ventos. De repente, alguém — ou alguma coisa — surge andando sobre as águas. E eles, imediatamente, gritam: “É um fantasma!”. (Mateus 14:26). Sim, aqueles homens que caminhavam com Jesus, que presenciaram milagres, exorcismos e ressuscitações… ainda acreditavam em fantasmas. E quem pode culpá-los? Até hoje tem gente que não acredita nem no vizinho, mas acredita piamente que uma boneca amaldiçoada pode destruir a humanidade.
Se quisermos elevar o nível do susto, basta abrir o livro do Apocalipse. Ali sim, senhores e senhoras, está um verdadeiro festival de monstros: bestas com múltiplas cabeças, dragões cuspindo fogo, gafanhotos com rostos humanos, escorpiões voadores, terremotos, sangue, trovões e trovões cheios de trovões. João, o visionário de Patmos, se fosse roteirista, daria inveja a qualquer cineasta. Mas poucos entendem que ele não estava escrevendo um manual de previsões catastróficas. Estava, na verdade, fazendo teologia subversiva, utilizando a linguagem codificada da literatura apocalíptica para dizer uma coisa simples, embora perigosa naqueles dias: “Jesus é o verdadeiro Senhor, não César.”
Por isso o uso de cifras, como o famoso 666 — um código que, para quem entende um pouco de numerologia hebraica, remete diretamente ao nome de Nero. É o tipo de mensagem que, se escrita de forma clara, seria rapidamente destruída pelo Império. Então, João escreve com monstros, bestas e trombetas — porque, às vezes, para dizer a verdade, é preciso falar como quem conta histórias de terror.
O fato, porém, é que o sobrenatural, esse que tanto nos amedronta, talvez nunca tenha sido o verdadeiro problema. O que realmente nos devora, nos assombra, nos tortura — isso tem CPF, CNPJ, código de barras, redes sociais, crachá corporativo e sorriso plastificado. Os verdadeiros monstros não estão nas florestas sombrias, nem nas casas mal-assombradas, nem na encruzilhada às três da manhã. Estão nas salas de reuniões, nas esferas do poder, nas estruturas que alimentam o tráfico humano, os abusos, a violência, a fome, a miséria e a guerra.
Se formos honestos, veremos que o terror que nos rodeia não vem de outro mundo, mas do nosso. Olhem a história: colonialismo, escravidão, guerras, genocídios, exploração, pais que matam filhos, filhos que matam pais, humanos que tratam outros humanos como mercadorias. E, não satisfeitos, ainda projetamos no sobrenatural os horrores que não temos coragem de reconhecer em nossa própria humanidade.
Enquanto isso, seguimos com medo dos fantasmas, dos vampiros, dos lobisomens — e, claro, dos filmes de terror. Mas ignoramos que os verdadeiros vampiros não têm presas, mas contratos; que os lobisomens não uivam, mas fazem discursos; e que os fantasmas que nos atormentam são, na verdade, as vítimas esquecidas da história, cujos clamores ainda ecoam, mesmo quando fingimos não ouvir.
No fim das contas, talvez Jesus tenha razão — como sempre teve. Naquela noite no lago, quando os discípulos tremiam de medo, ele não precisou de fórmulas mágicas, nem de rituais exorcistas. Bastou uma frase curta, simples e poderosa, que ecoa até hoje para quem tem ouvidos:
“Coragem. Sou eu. Não tenham medo.” (Mateus 14:27)
Talvez, no fundo, toda teologia seja isso: aprender a discernir os verdadeiros fantasmas — e, acima de tudo, aprender a não temê-los.
Views: 3

