O Evangelho e a Favela: Uma leitura do Texto “Igreja na favela não dá”, de Luiz Sayão

Uma análise crítica das falas de Luiz Sayão sobre cristãos na favela e o que o Evangelho realmente diz sobre presença, missão e dignidade.

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“Quando alguém se converte, muda de vida e sai da favela.”
Assim afirmou, com convicção, o interlocutor de Luiz Sayão, no texto publicado em formato de carrossel digital com o título provocativo: “Igreja na favela não dá” (Texto na íntegra no final deste artigo).

Diante de tal afirmação, o coração que crê e pensa não pode permanecer em silêncio. Há, sim, elementos de profunda verdade no texto de Sayão — e, com justiça, eles precisam ser reconhecidos. No entanto, há também ambiguidades sérias, falsos silogismos e riscos teológicos que não podem ser ignorados. Pior ainda: há a reprodução inconsciente de um imaginário profundamente elitista e meritocrático que, se não for confrontado com o Evangelho de Jesus, acabará por sufocá-lo.

Este artigo é, portanto, uma tentativa de leitura honesta, crítica e esperançosa de um texto que, embora bem-intencionado, carrega consigo armadilhas antigas vestidas de piedade contemporânea.

1. Quando o Evangelho vira programa de superação social

Sayão narra uma conversa com um missionário que trabalha numa favela. Ele pergunta sobre o crescimento da igreja naquele local, e a resposta o surpreende: “Igreja séria e bíblica não cresce na favela”. A justificativa vem logo em seguida: quando alguém se converte verdadeiramente, essa pessoa muda de vida, abandona os vícios, arruma emprego, cuida da família — e então sai da favela. Ou seja, a transformação provocada pelo Evangelho leva à mobilidade social, e, por isso, paradoxalmente, a igreja não cresce naquele lugar. Porque os convertidos “somem”.

Sim, há verdade aí. O Evangelho transforma. Ele quebra ciclos. Ele ilumina becos e corações. Ele alcança o violento, o adúltero, o viciado, o abusador, e os transforma em nova criatura. Quando isso acontece, sim, a vida muda — inclusive socialmente. Louvemos a Deus por isso.

Mas, se pararmos aí, teremos perdido o coração do Evangelho. Porque a lógica que se esconde atrás dessa leitura é sutil, porém perigosa: a salvação como performance, a conversão como sinônimo de estabilidade, produtividade, comportamento civilizado, êxodo social. O Evangelho, então, se torna um curso de superação pessoal com selo bíblico. E, aqui, precisamos fazer uma pausa e perguntar: será que Jesus veio para nos ensinar a pescar?

2. “Ensinar a pescar” não é Evangelho

No texto de Sayão, há um momento em que o missionário contrapõe o ensino assistencialista com a frase: “O Evangelho não é dar o peixe, é ensinar a pescar.” E aqui surge o primeiro problema estrutural. Essa metáfora, nascida nos discursos liberais e popularizada por políticas neoliberais de assistência mínima, pode parecer sensata à primeira vista. Mas ela contradiz frontalmente o cerne do Evangelho.

O Evangelho não se dirige apenas aos que podem pescar. Ele também alimenta os que não conseguem nem levantar da cama. Jesus não curou apenas os cegos, mas os acolheu. Ele não restaurou apenas os corpos, mas os vínculos sociais e a dignidade dos que nunca tiveram vez. Não pediu currículo, nem habilidades técnicas, nem estabilidade emocional. Disse apenas: “Vinde a mim todos os que estão cansados e sobrecarregados” (Mt 11:28). Isso inclui, sim, o pescador capaz de aprender, mas também o paralítico à beira do tanque, o endemoniado de Gadara, a viúva que só tem duas moedas, o mendigo que ninguém quer convidar para a ceia.

Evangelho não é meritocracia espiritual. Não é sobre merecer o peixe, nem provar que sabe pescar. É sobre receber a graça que sustenta até quem só tem forças para estender a mão.

Ao assumir a lógica da “pesca”, o discurso do missionário (e, por consequência, do texto) esvazia a radicalidade da boa nova. A transforma em programa de capacitação moral. Mas o Evangelho não é manual de empreendedorismo. É pão para quem tem fome.

3. A favela como “o mundo”: um deslocamento teológico perigoso

Outro ponto crucial no texto de Sayão é o tratamento simbólico dado à favela. Ainda que não se diga isso diretamente, há uma clara equivalência entre a favela e o “mundo” do qual o cristão precisa sair. A favela é o lugar do vício, da violência, da promiscuidade. O crente, ao se converter, abandona tudo isso — e, assim, deixa também a favela.

O problema aqui não está em reconhecer que há, de fato, muito sofrimento nas comunidades empobrecidas. O problema está em atribuir à favela a condição espiritual que a Bíblia reserva ao sistema do mundo — aquele que se opõe a Deus, em qualquer lugar, seja um morro ou uma mansão.

A lógica implícita é:

  • A favela representa o Egito, o lugar da escravidão;
  • O cristão convertido sai da favela, como o povo saiu do Egito.
  • Logo, a salvação está em sair da favela.

Mas essa alegoria desaba sobre si mesma. No Êxodo, o povo saiu do Egito, mas o Egito não saiu do povo. Isso é, na verdade, o drama da caminhada no deserto. Trocar a favela por um bairro de classe média não significa, necessariamente, libertação espiritual. A violência pode continuar nos lares. O adultério, agora mais discreto, ainda vive. O racismo, o egoísmo, a idolatria do sucesso — todos podem mudar de endereço.

Favela não é sinônimo de “mundo”. É território de gente, de luta, de beleza, de cultura, de sobrevivência. E é, acima de tudo, território onde o Reino de Deus pode se encarnar. Não para tirar o crente dali, mas para plantar a igreja ali. Com raízes profundas.

4. O mundo é mais amplo do que a favela: espiritualidade não tem CEP

Se levarmos às últimas consequências a lógica do missionário narrado por Sayão — de que o verdadeiro convertido sai da favela como consequência natural de sua transformação —, surgem perguntas desconcertantes.

Será que os moçambicanos, os angolanos, os haitianos, ou tantos outros povos do Sul Global, ao se converterem, deveriam deixar seus países rumo ao Norte Global, onde há mais riqueza, menos violência e melhor estrutura social? Será que a conversão autêntica exige, também nesses casos, uma migração geográfica em direção a contextos mais “abençoados”?

Se aceitarmos essa premissa, teríamos de admitir também que os indianos, ao se converterem do hinduísmo ao cristianismo, deveriam sair de sua terra de muitos deuses e buscar morada em países com “menos ídolos” e, quem sabe, com mais igrejas protestantes. Da mesma forma, os cristãos de países europeus altamente secularizados estariam impedidos de viver uma fé autêntica por estarem rodeados de ateísmo e indiferença religiosa — deveriam, então, buscar abrigo espiritual em países do chamado “cinturão evangélico”?

E o que dizer dos cristãos norte-coreanos, impedidos de exercer sua fé publicamente, perseguidos em um regime fechado e opressor? Estarão todos espiritualmente comprometidos por não conseguirem deixar o seu país?

Esse tipo de raciocínio evidencia o absurdo da lógica territorialista, como se a geografia definisse a espiritualidade. O que está em jogo, na verdade, é a repetição de um modelo messiânico colonial: o do “salvador branco”, que desce até os territórios da miséria para resgatar almas perdidas, mas que não se mistura, não se encarna, não permanece.

O ideal do super-herói evangélico, que “resgata” e “eleva” o pobre para fora de sua realidade, é sedutor, mas antibíblico e logicamente falho. Jesus não se vestiu de privilégio para resgatar o mundo — ele se despiu de sua glória e assumiu nossa carne (Fp 2:6-8). O Verbo não se fez capitalista. Fez-se carne. E habitou entre nós.

A conversão autêntica não exige mudança de CEP, país, condição social, nem mesmo o fim imediato das limitações estruturais. A transformação do Evangelho não depende de geografia, mas de fé, graça e nova vida em Cristo — em qualquer lugar onde ela floresça.

5. A ética protestante e o espírito do mercado

A relação entre espiritualidade e ascensão social descrita no texto de Sayão remonta, direta ou indiretamente, ao que Max Weber analisou em sua obra clássica A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. Weber mostrou como certos aspectos da teologia reformada (especialmente o calvinismo) foram se misturando com valores de disciplina, trabalho, produtividade e sucesso — até que a benção espiritual passou a ser medida em termos econômicos.

É isso que vemos no texto: o convertido agora é produtivo, cuidadoso, responsável. E isso é bom! O problema é quando se naturaliza a equivalência entre conversão e ascensão de classe. Quando se presume que quem permanece na favela não se converteu “direito”. Quando se insinua que a verdadeira fé se prova na conquista de uma casa melhor, de um carro, de uma vaga no mercado.

Weber chamou isso de “a jaula de ferro”. É o momento em que a espiritualidade se torna utilitária, funcional, instrumento de sucesso — e não mais lugar de descanso, de graça, de misericórdia para quem não pode dar nada em troca.

6. O que precisamos dizer — e viver

Reconheçamos: o texto de Sayão tem méritos. Ele tenta valorizar o poder transformador do Evangelho. Ele reconhece que o discipulado muda vidas. Ele ouve e aprende com quem está no front da missão. Tudo isso é louvável.

Mas ao mesmo tempo, precisamos ter coragem para apontar o que se esconde nas entrelinhas:

  • A favela não é o Egito. O Egito é todo lugar onde Deus não reina — inclusive dentro das igrejas.
  • Ensinar a pescar não é evangelho. Evangelho é pão, graça, corpo partido e sangue derramado.
  • O crescimento da igreja não se mede pelo número de pessoas que saem da comunidade, mas pelo número de vidas que permanece como fermento nela.

Jesus não disse: “Ide e saí das cidades pobres.” Disse: “Ide e fazei discípulos… em todas as nações.” E isso inclui o beco, a viela, o cortiço, a comunidade. Inclusive aquele que nunca aprenderá a pescar — mas que pode, sim, experimentar o pão da vida.

Transcrição na Íntegra do texto retirado do perfil do Luiz Sayão

IGREJA NA FAVELA NÃO DÁ
FALA, SAYÃO!

FALA, SAYÃO! (2/6)
Há muitos anos tenho sentido a necessidade de apoiar projetos que abençoem gente sem esperança e em condição de pobreza e miséria.
Como é triste e doloroso ver a situação de tantas pessoas assim. Um desses projetos é o UNA que tem abençoado muita gente. Já faz um bom tempo estive conversando com um missionário que servia numa comunidade assim. Na minha ignorância, no diálogo, eu tentava “ensinar” muita coisa para ele.

Então perguntei: “Como vai o crescimento da igreja na favela?”

FALA, SAYÃO! (3/6)
A resposta foi desconcertante: “Igreja séria e bíblica não cresce na favela”.

Acostumado a associar pobreza com religiosidade, questionei: “Como assim? Não cresce?”

Então veio a explicação promissora: “Quando alguém se converte a Cristo naquele meio, pouco tempo depois, muda de vida e sai da favela.” Uau! Quis saber mais.

E, sorrindo, ele prosseguiu: “O novo convertido, logo deixa os vícios com bebida, drogas, jogo. Ele bate mais na mulher.

FALA, SAYÃO! (4/6)
Começa a cuidar dos filhos. Arruma emprego com mais facilidade e começa a sonhar com uma vida nova.”

E com um olhar triunfante, ele asseverou: “Não dá uma, ele sai da favela e vai viver uma vida melhor. Pois, quando a igreja cresce, quem some é o crente!”
Fiquei meio bobo. Não sabia se ria, se chorava, ou gritava. Quanta dor, desigualdade, abandono! Mas, ao mesmo tempo, que bênção é o evangelho que transforma a vida das pessoas! Leva luz nas trilhas difíceis da cidade.

FALA, SAYÃO! (5/6)
O “pretenso professor Sayão” virou aluno com atenção: ele me disse com um olhar de experiência e sabedoria: “Muita gente tem fé para as pessoas da favela. Mas não funciona o ‘de que adianta dar o peixe se não ensinar a pescar?’. É isso que o Evangelho de Cristo faz.”

Meus olhos brilharam ainda que lágrimas não descessem. Que coisa admirável saber que o Evangelho abençoa vidas mesmo em lugares onde as pessoas nem têm direitos e vivem sem esperança, mas podem encontrar abrigo pelo amor de Deus em Cristo Jesus!

FALA, SAYÃO! (6/6)
Como em Gerasa, em minha vida “vi muitos assentados aos pés de Jesus, vestidos e em perfeito juízo” (Lc 8.35). Naquele dia, ouvi mais do que uma explicação, ouvi uma pregação, ouvi um testemunho, ouvi o Evangelho — e voltei dali abençoado e profundamente conscientizado por aquilo que realmente vale.

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Paulo Freitas

Paulo Freitas

Paulo Freitas é teólogo, filósofo, professor e presbítero. Autista, escreve sobre fé, fragilidade, dor, neurodiversidade e tudo o que nos torna profundamente humanos.

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