A imagem mostra o interior de uma fábrica do século XIX, com estrutura de madeira e engrenagens grandes movendo máquinas a vapor. Há vários operários, todos homens, vestidos com roupas típicas da época — camisas de mangas arregaçadas, coletes e boinas — trabalhando de forma concentrada. O ambiente é sombrio, iluminado parcialmente por feixes de luz que entram pelas janelas altas. No fundo, penduradas na parede, há duas imagens religiosas emolduradas, sugerindo um elemento de fé no meio do trabalho pesado. O chão está coberto por palha ou fibras vegetais, e o ar parece denso com fumaça e vapor das máquinas. A atmosfera transmite esforço físico intenso, cansaço e um toque de devoção silenciosa.
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A História da Dor: Entre a Cruz, o Mercado e o Silêncio

Ao longo da história da humanidade, uma constante atravessa impérios, religiões, sistemas econômicos e correntes filosóficas: nós sofremos, a dor é real. Sofremos no corpo, na mente e na alma; sofremos na guerra e na paz; sofremos na abundância e na escassez. Cada época trouxe seus próprios tipos de dores, e cada indivíduo enfrentou — e ainda enfrenta — seus próprios “demônios”.

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O que muda, no entanto, é como a sociedade interpreta e lida com esse sofrimento. Nem sempre existiu o conceito de vitimização. Nas sociedades antigas, lamentar-se publicamente não era, via de regra, bem-visto. A dor, quando exposta, podia ser interpretada como fraqueza, vergonha familiar, castigo divino, instabilidade emocional, preguiça ou até sinal de má reputação.

Quando o conceito de vitimização começou a surgir — em sua acepção original — ele não carregava conotação pejorativa. Ser vítima era uma constatação de fato: alguém foi injustiçado, ferido, violentado ou oprimido, e a comunidade reconhecia o dano e a legitimidade da queixa. A partir da modernidade, porém, o termo ganhou outro tom: “vitimizar-se” passou a significar usar a dor como capital social ou manipulação emocional. Essa mudança diz mais sobre a incapacidade coletiva de lidar com o sofrimento alheio do que sobre quem sofre.

O primeiro século da Igreja: o auge da liberdade para sofrer juntos

Se há um período em que o sofrimento foi não apenas aceito, mas compartilhado, aliviado e até honrado com naturalidade, foi o primeiro século da Igreja Cristã. O pano de fundo era o judaísmo, que já possuía um espaço legítimo para o lamento — basta lembrar dos Salmos, dos profetas que choravam sobre Jerusalém, das lamentações públicas nos portões da cidade.

Jesus, porém, elevou esse espaço a outro patamar. Ele não apenas chorou com os que choravam (Jo 11.35), como validou a dor ao ponto de incluí-la nas bem-aventuranças (“Bem-aventurados os que choram…” – Mt 5.4). Os discípulos viviam em comunhão profunda: “levai as cargas uns dos outros” (Gl 6.2) não era uma frase de efeito, mas um modo de vida. A dor não era vergonha, não era moeda, e tampouco era escondida.

A virada ascética e penitencial

A partir do século II d.C., especialmente com o avanço da patrística e do monasticismo, o sofrimento começou a ganhar contornos penitenciais. A dor passou a ser vista como instrumento de purificação — e, nesse sentido, “digna de louvor”. Porém, essa valorização ascética trouxe efeitos colaterais: quando o sofrimento não estava ligado à penitência ou à fé, podia ser visto como sinal de pecado, desordem espiritual ou falta de disciplina.

Na Idade Média, a melancolia — conceito próximo ao que chamaríamos hoje de depressão — passou a ser associada à acídia, uma “preguiça espiritual” condenada pelos monges. Ainda assim, a Igreja, mesmo com interpretações duras, foi uma das poucas instituições a prover cuidado sistemático: surgiram hospitais, albergues e ordens dedicadas a aliviar o sofrimento dos moribundos.

A Reforma e o resgate da palavra

A Reforma Protestante rompeu, entre outras coisas, o monopólio da Igreja Católica sobre a administração do sofrimento. A possibilidade de falar sobre a própria dor saiu dos confessionários e voltou ao espaço da comunidade. Martinho Lutero, com franqueza, falava de suas ansiedades, medos e ataques espirituais. O sofrimento foi devolvido ao campo humano, acessível, compartilhável. O cuidado deixou de ser apenas institucional e voltou a ser relacional.

O desprezo moderno pela dor

O Iluminismo trouxe avanços médicos e científicos, mas também cultivou uma visão mais fria: o sofrimento passou a ser algo a ser racionalmente eliminado ou, quando impossível, ignorado. A Revolução Industrial agravou esse quadro. Dores físicas e emocionais eram vistas como obstáculos à produtividade; quem não trabalhava era fraco.

Com a ascensão da psicanálise e, posteriormente, da psicologia, houve uma validação acadêmica e clínica da dor emocional. Entretanto, o sofrimento começou também a se tornar um produto: clínicas, terapias e medicamentos passaram a ser parte de uma indústria. No capitalismo contemporâneo, “quanto mais se tem para pagar, menos se tem para sofrer” — e vice-versa.

A Igreja contemporânea: múltiplas leituras do sofrimento

Nos últimos séculos, a Igreja Cristã assumiu diversas roupagens. Há vertentes que ainda veem a dor como pecado, falta de fé ou até ação demoníaca, especialmente sob a influência de teologias triunfalistas (positivista, da prosperidade, coaching evangélico). Por outro lado, existem comunidades que reconhecem o sofrimento como parte legítima da jornada cristã, buscando meios para atenuá-lo e acompanhar o sofredor com paciência e misericórdia.

Historicamente, apesar de seus desvios, a fé cristã manteve um diferencial: o cuidado com o fraco e o vulnerável como prioridade. Das primeiras comunidades às missões médicas modernas, dos hospitais monásticos aos centros de reabilitação, a cruz sempre foi um símbolo de compaixão ativa — ainda que, em alguns momentos, esquecida por seus próprios seguidores.

Conclusão

A história nos mostra que a dificuldade humana de lidar com a dor — seja a própria, seja a alheia — não é nova. A cruz de Cristo, porém, nos lembra que não existe cura sem partilha, nem redenção sem compaixão. No primeiro século, os discípulos tinham algo que talvez tenhamos perdido: a liberdade de sofrer juntos, sem máscaras, sem mercado e sem vergonha.

Talvez, no meio de tantas mudanças culturais e econômicas, seja hora de resgatar essa liberdade — não para romantizar o sofrimento, mas para finalmente dar-lhe o tratamento que merece: verdade, consolo e comunidade.

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Casado com Janaína e pai do Ulisses. Tutor da Zaira (Chow-Chow) e do Paçoca (hamster). Escritor por hiperfoco e autista de nascença. Membro e presbítero da Igreja REMIDI e missionário pelo PRONASCE. Teólogo, Filósofo e Pedagogo em formação. Especialista em Docência do Ensino Superior e em Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva. Meus autores preferidos são: Agostinho, Kierkegaard, João Wesley, Karl Barth, Bonhoeffer, Tillich, C. S. Lewis, Stott e alguns pais da igreja. Meus hobbys são: ler, assistir filmes e séries.

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