
A Apóstola de Samaria: Da Vergonha às Missões
Em João capítulo 4, o autor do quarto evangelho nos leva a um dos encontros mais comoventes e teologicamente revolucionários de todo o Novo Testamento. Jesus, o Verbo encarnado, o Logos eterno que fez-se carne e habitou entre nós (Jo 1:14), decide fazer uma parada inesperada — mas planejada — em Samaria. E ali, no calor do meio-dia, à beira do antigo poço de Jacó, ele muda a história não apenas de uma mulher, mas de uma cidade inteira. O encontro com a mulher samaritana é, talvez, o mais claro vislumbre de como a fé cristã é, em sua essência, libertadora.
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Em um mundo moldado por barreiras étnicas, culturais, religiosas e de gênero, Jesus atravessa todos os limites e preconceitos de seu tempo. Para os judeus, os samaritanos eram mestiços impuros, sincretistas hereges, um povo a ser evitado. Pior ainda seria um homem judeu dirigindo-se a uma mulher samaritana desacompanhada. Pior ainda seria essa mulher ser mal falada, vista com desconfiança e desprezo até pelos seus. Mas Jesus vê, onde todos só enxergam culpa, uma alma ferida e sedenta.
O poço de Jacó se torna, então, altar e púlpito. O palco de uma das maiores desconstruções sociais da Escritura. Ali Jesus não apenas oferece uma água que sacia a sede mais profunda do ser humano, mas também restaura a dignidade de uma mulher que sequer ousava se misturar aos outros. Ela ia buscar água ao meio-dia, quando o sol ardia, não por conveniência, mas por vergonha. Era uma estratégia para evitar os olhares acusadores e os comentários maldosos. E ainda assim, Jesus estava lá, esperando por ela.
Há algo de profundamente teológico nesse encontro. Jesus, que veio buscar e salvar o que se havia perdido (Lc 19:10), dispensa seus discípulos para comprar comida — não porque precisasse de privacidade, mas porque o Reino exige atenção exclusiva àquele que sofre, àquele que clama em silêncio. O diálogo entre os dois é uma obra-prima da graça progressiva. Primeiro, Jesus quebra o silêncio do preconceito e fala com ela. Depois, propõe uma dádiva: água viva. Quando ela mostra interesse, ele a confronta com sua realidade mais íntima, não para humilhá-la, mas para que ela se veja, se reconheça, e possa renascer em liberdade.
“Vai, chama teu marido.” Uma frase que não tem tom de acusação, mas de cura. Ela responde: “Não tenho marido.” E Jesus lhe diz: “Disseste bem… já tiveste cinco, e o que tens agora não é teu marido.” Ali não há moralismo. Jesus não lista pecados, não exige penitência, não fala de inferno. Apenas constata. E a constatação de Jesus sobre nossa vida é sempre um convite à transformação.
O que acontece a seguir é digno de nota. Ela muda de assunto, fala de adoração, tenta se esconder no debate teológico. E Jesus a conduz ao centro: “Eu sou o Messias, o que fala contigo.” É a primeira grande revelação messiânica direta do evangelho de João. E é feita a uma mulher. Samaritana. Marginalizada. Uma que, segundo qualquer judeu piedoso da época, não mereceria sequer ser ouvida.
A mulher, até então escondida de todos, torna-se a primeira missionária samaritana. Deixa seu cântaro — símbolo de sua vida antiga — e corre à cidade, testemunha corajosamente o que lhe aconteceu e traz muitos ao encontro com Cristo. O texto nos diz que “muitos creram nele por causa do testemunho da mulher” (Jo 4:39). João, ao escrever seu evangelho por volta de 90 d.C., sabia que estava mexendo com estruturas. Em uma sociedade patriarcal, afirmar que uma mulher foi escolhida pessoalmente por Jesus para evangelizar uma cidade era escandaloso — e revolucionário.
Ali, às margens do poço de Jacó, Jesus não apenas revelou sua identidade, mas também revelou quem ela era aos olhos do Pai. Não uma adúltera. Não uma fracassada. Mas uma filha. Uma mensageira. Uma apóstola no sentido mais literal do termo — enviada.
Esse relato precisa ser lido hoje com os olhos da teologia da libertação, da dignidade, da reconciliação. A mulher samaritana é símbolo de todos os que carregam vergonha, que se escondem, que se sentem fora do plano divino. E Jesus nos mostra que ninguém está fora do alcance do amor do Pai. Que ninguém está longe demais para ser encontrado pelo Messias. Que as estruturas religiosas que tentam definir quem é digno ou não de servir a Deus são desfeitas pelo próprio Cristo.
O poço de Jacó não secou. Ele está em cada esquina onde alguém sedento espera uma palavra. A fé cristã é isso: encontro, redenção, libertação e missão. Jesus continua indo a Samaria. Continua buscando quem quer apenas se esconder. E continua fazendo dessas pessoas os instrumentos mais belos de sua obra.
A mulher que um dia evitava os olhares dos outros agora os chama ao encontro com Deus. Ela já não teme. Já não se esconde. Ela crê. E por isso, ela é livre. Totalmente livre.
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