A Verdadeira Vocação da Riqueza no Evangelho

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Na longa e fascinante história da fé cristã, há um fato que não pode ser ignorado: pessoas com posses materiais sempre estiveram presentes no meio do povo de Deus, não como senhores opressores ou como detentores de privilégios religiosos, mas como servos, mordomos e cooperadores da obra de Cristo. Desde o ministério terreno de Jesus até a igreja primitiva, homens e mulheres abastados entenderam que a fé que os alcançou não queria apenas seus corações, mas também suas mãos, seus lares e seus bens.

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Os Evangelhos relatam com simplicidade e profundidade o papel de mulheres como Joana, esposa de Cuza, administrador de Herodes, e outras como Susana e Maria Madalena, que “ajudavam a sustentar Jesus e seus discípulos com seus bens” (Lucas 8:1-3). Eram mulheres financeiramente estáveis que compreenderam que seus recursos deveriam servir ao Reino, e não ao conforto pessoal.

No momento mais sombrio da vida de Jesus, quando muitos o haviam abandonado, foi José de Arimateia, homem rico e membro do Sinédrio, quem teve a coragem de pedir o corpo do Mestre crucificado e oferecer-lhe seu túmulo novo (Mateus 27:57-60). Ao lado dele, Nicodemos, outro membro da elite religiosa, trouxe uma quantidade generosa de especiarias caríssimas para ungir o corpo de Jesus (João 19:39). Em um tempo em que seguir Jesus era perigoso, esses homens não economizaram nem recursos nem reputação.

Na igreja primitiva, Barnabé, possuidor de terras, vendeu um campo e entregou o valor aos apóstolos, não buscando reconhecimento, mas alívio aos necessitados (Atos 4:36-37). Lídia, uma empresária do ramo da púrpura, abriu sua casa para que a igreja se reunisse em Filipos (Atos 16:14-15). Crispo, chefe da sinagoga, ao se converter, influenciou muitos em Corinto a seguirem o mesmo caminho (Atos 18:8). Filemom, proprietário de uma casa ampla, abriu seu lar para a igreja (Filemom 1:1-2). Gaio, generoso anfitrião, acolheu Paulo e toda a comunidade cristã local (Romanos 16:23). Esses nomes não são exceções: eles representam um princípio bíblico.

A fé cristã, diferentemente do que muitos praticam hoje, nunca foi uma religião da ostentação nem da miséria, mas uma comunhão de pessoas que compartilham o que têm. Jesus não condenou a riqueza em si, mas o amor à riqueza. O que Ele denunciou foi a idolatria de Mamon, a confiança arrogante nos bens, e não a boa administração dos recursos colocados a serviço de Deus e do próximo.

O jovem rico do Evangelho não foi convidado a vender tudo porque a pobreza fosse uma virtude, mas porque seu coração estava preso ao que possuía. Em contraste, outros ricos mencionados na Bíblia venderam bens, abriram suas casas, dividiram seu pão e ofertaram com liberalidade — não para cumprir uma obrigação religiosa, mas porque tinham entendido o Evangelho do amor prático e concreto.

Na história da Igreja, aqueles que verdadeiramente se converteram e possuíam grandes riquezas acabaram por empobrecê-las voluntariamente, investindo suas vidas e bens nos outros. Não há registro de santos ricos que continuaram acumulando fortuna para si mesmos após encontrarem Cristo. Suas fortunas foram colocadas a serviço do Reino, muitas vezes os levando a viver com muito menos do que tinham antes.

Infelizmente, vemos hoje igrejas que exaltam a riqueza como se fosse um sinal automático da bênção divina, ostentando templos luxuosos, trajes suntuosos e líderes que vivem vidas incompatíveis com o Evangelho de Jesus. Isso deturpa a mensagem cristã, reduzindo-a a um projeto de enriquecimento terreno, e não ao chamado à generosidade, à simplicidade e ao amor.

A fé cristã não nasceu como uma religião, mas como uma comunidade de discípulos que compartilham vida, mesa e missão. Pessoas ricas sempre foram bem-vindas nesse espaço de comunhão, não por seus recursos, mas pelo amor que os move a usá-los em benefício de outros. A verdadeira fé em Cristo transforma o coração e, por consequência, transforma também a relação do indivíduo com seu dinheiro.

Jesus nos convida, todos os dias, a “vender tudo e dar aos pobres” (Lucas 18:22). Mas esta venda não é literal para todos — é uma entrega total do coração, uma disposição de que nada nos prenda mais do que a vontade de Deus. Quem tem muito administra com sabedoria e generosidade; quem tem pouco ama com tudo o que é. E ambos se encontram no centro da vontade de Deus, onde não há senhorio de bens, mas apenas o senhorio do amor.

Que os ricos, pobres e todos nós sejamos encontrados “ricos em boas obras, generosos e prontos a repartir”, como exorta Paulo a Timóteo (1 Timóteo 6:18). Pois assim se reflete o caráter de Deus, que “sendo rico, se fez pobre por amor de nós, para que por meio da sua pobreza nos tornássemos ricos” (2 Coríntios 8:9).

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Paulo Freitas

Paulo Freitas

Paulo Freitas é teólogo, filósofo, professor e presbítero. Autista, escreve sobre fé, fragilidade, dor, neurodiversidade e tudo o que nos torna profundamente humanos.

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