Imagem focada em púlpito de madeira escura esculpida em igreja, com iluminação natural suave que realça detalhes e textura. Fundo desfocado, tom quente, atmosfera serena e contemplativa.
Artigo

Púlpito: Entre o Símbolo e o Exagero

Introdução

O púlpito cristão, em sua forma mais simples, é um suporte para a proclamação da Palavra. No entanto, historicamente, ele assumiu uma função que ultrapassa a utilidade física, tornando-se um símbolo teológico da centralidade das Escrituras nas comunidades de fé. Desde os primeiros séculos do cristianismo até os movimentos reformados, o púlpito foi sendo progressivamente elevado — em sentido literal e espiritual — como expressão da autoridade bíblica. Ao mesmo tempo, seu desenvolvimento estético e funcional carregou ambivalências: serviu tanto à edificação da fé quanto ao fortalecimento de estruturas hierárquicas que, por vezes, se afastaram do espírito evangélico.

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Nos dias atuais, observa-se uma transformação preocupante: o púlpito tem sido cada vez mais utilizado como palco para discursos que, embora úteis em outras esferas — como a psicologia, a política ou as ciências humanas —, não encontram ali seu espaço legítimo. Essa diluição da função original do púlpito pode comprometer sua identidade simbólica e sua missão espiritual. Assim, é necessário recuperar a distinção essencial entre o ensino bíblico e outras formas de conhecimento, reconhecendo que, embora estes últimos tenham seu valor, não possuem a mesma autoridade salvífica e formativa da Palavra de Deus.

Este artigo propõe uma reflexão bíblica, teológica, histórica e crítica sobre o púlpito como espaço sagrado para a pregação. Através de um percurso que vai da estética na Antiguidade e na Reforma até o uso contemporâneo e suas distorções, defendemos a necessidade de preservar o púlpito como lugar exclusivo para o ensino e proclamação da Escritura — não por tradicionalismo, mas por fidelidade à missão da igreja e ao seu Senhor.

1. A estética do púlpito na Antiguidade e na Reforma: beleza, poder e Palavra

Ao longo da história da igreja cristã, o púlpito ocupou posições e formas variadas, sempre carregando consigo não apenas uma função prática, mas uma forte carga simbólica e teológica. Desde os primeiros séculos até a Reforma, a estética do púlpito — sua altura, posição central, ornamentação — refletia uma visão espiritual em que a Palavra de Deus não apenas era ouvida, mas visivelmente entronizada.

Nos tempos antigos, sobretudo na igreja medieval e depois durante a Reforma, púlpitos elevados, de pedra ou madeira esculpida, com acesso por escadas e localizados no centro ou em posição destacada no templo, não eram simplesmente decisões arquitetônicas. Eles comunicavam algo essencial: a Palavra ocupa o lugar mais alto entre nós. Segundo Elizabeth Lev, especialista em arte sacra, o púlpito é apresentado como símbolo central da pregação cristã e como um lugar privilegiado onde arte, teologia e comunicação se encontram. Ele não é apenas uma estrutura funcional para elevar o pregador, mas um espaço carregado de significado simbólico, litúrgico e estético. O púlpito assume importância histórica ao marcar a transição do ambão para uma plataforma de destaque nas igrejas medievais, sendo o centro da proclamação da Palavra e, muitas vezes, uma obra-prima artística que reforça visualmente a mensagem pregada. Na Idade Média e na Contra-Reforma, ele é visto como um instrumento de impacto espiritual e sensorial, capaz de comover, ensinar e converter por meio da eloquência e da beleza. Sua importância também está na forma como expressa a autoridade e solenidade da pregação, sendo um verdadeiro palco onde o Evangelho se torna visível e audível. Ela lamenta o declínio desse espaço, refletindo uma perda simbólica da fusão entre palavra e beleza na experiência da fé cristã. (Lev, 2017 The Art of Preaching and the Art of the Pulpit).

Essa estética não era vazia. Era carregada de sentido. Os cristãos medievais e reformados acreditavam que ver e ouvir andavam juntos na experiência da fé. O púlpito trabalhava para os sentidos como o altar e os vitrais: apontava para uma realidade superior. Como tal, a centralização e ornamentação do púlpito não eram vaidades estéticas, mas expressões visíveis da centralidade das Escrituras. A Bíblia não era uma entre várias vozes na liturgia — ela era a voz.

Na Reforma Protestante, esse simbolismo foi ainda mais fortalecido. A substituição do altar eucarístico central pelo púlpito, especialmente em igrejas reformadas, indicava um reposicionamento teológico profundo: Cristo se comunica prioritariamente pela Palavra proclamada. Hughes Oliphant Old observa que os púlpitos elevados da Reforma não estavam centrados no poder humano, mas no lugar de honra da Escritura no culto cristão (Old, 2002, The Reading and Preaching of the Scriptures in the Worship of the Christian Church, Vol. 4). O púlpito, assim, tornou-se não apenas uma peça litúrgica, mas um protesto visual contra o clericalismo sacramentalista de seu tempo.

Entretanto, essa mesma estética, que visava honrar a Palavra, também deu margem a distorções. Com o tempo, o púlpito elevado deixou de ser apenas o trono da Escritura e passou, em certos contextos, a ser percebido como o trono do pregador. A altura passou a representar, também, hierarquia. A centralidade visual deu lugar à centralização da autoridade em uma única figura — frequentemente inquestionável. Essa transição, ainda que não fosse o propósito inicial, foi facilitada justamente pela força simbólica do púlpito.

Contudo, para fazer uma crítica justa, é preciso empatia histórica. Os cristãos antigos e reformadores não tinham a mesma aversão simbólica que a modernidade desenvolveu. Em uma época em que o espiritual e o simbólico estavam mais entrelaçados, a beleza e a imponência de um púlpito eram compreendidas como expressão de reverência. É preciso reconhecer que, para eles, um púlpito ornamentado era uma forma legítima de exaltar a Palavra. Os elementos visuais do culto — incluindo a forma e localização do púlpito — servem para ensinar, intencionalmente ou não, o lugar da Palavra no coração do povo.

Já nos tempos mais primitivos da igreja, no século I e II, não havia esse tipo de construção estética. A Palavra era central, mas proclamada nas casas, nas sinagogas e nas praças — sem púlpitos visíveis, embora o conceito de “lugar de fala autorizada” já estivesse presente. Isso mostra que o valor da pregação antecede a estética, mas a estética também pode comunicar valores importantes quando usada com discernimento. A existência de púlpitos, portanto, não define a fidelidade à Palavra, mas pode reforçá-la — ou distorcê-la — conforme seu uso.

Essa ambiguidade entre símbolo e exagero nos conduz diretamente ao ponto seguinte, onde refletiremos sobre os riscos da estetização desmedida e da teatralização da pregação. Afinal, como todo símbolo religioso, o púlpito pode ser ponte ou barreira — tudo depende do espírito com que é erguido.

2. O risco da estética exagerada: quando o púlpito se torna trono

Se por um lado o púlpito foi concebido como símbolo da centralidade da Palavra de Deus, por outro, a história da Igreja nos mostra que nem sempre ele foi usado com a reverência e integridade que sua função demanda. Em muitos contextos, o púlpito se converteu em um símbolo de prestígio humano e autoridade espiritual mal aplicada. Sua estética — inicialmente voltada para apontar para a Escritura — foi transformada em palco de vaidade, poder e exclusão. Como nos lembra o apóstolo Paulo: “Alguns pregam a Cristo por inveja e porfia… outros, por amor” (Fp 1.15). O púlpito, portanto, nunca foi em si uma armadilha, mas se tornou ferramenta nas mãos daqueles que usaram a aparência da piedade para satisfazer seus próprios interesses.

Historicamente, a cristandade passou por diversos momentos em que o púlpito — assim como outras expressões litúrgicas — foi instrumentalizado por lideranças carismáticas ou clericais em busca de autoridade inquestionável. A elevação física do púlpito, que deveria servir para tornar a Palavra audível e visível a todos, passou a servir também como símbolo de separação entre “o santo” e “o comum”. Em vez de lugar de serviço humilde, tornou-se trono de glória. Contudo, que fique claro, a autoridade do púlpito não provém de sua elevação física ou da reputação do pregador, mas da fidelidade à Palavra de Deus.

Essa deformação, no entanto, não começou no púlpito barroco ou nas catedrais da Reforma. Já no primeiro século, Paulo denunciava os que usavam a pregação como meio de autopromoção. “Pois todos buscam os seus próprios interesses, e não os de Jesus Cristo” (Fp 2.21). A preocupação paulina é antiga: o púlpito pode atrair os que desejam honra, louvor humano, controle espiritual e benefícios financeiros. Essa tentação se intensifica quando a estética do púlpito serve ao ego do pregador. Quanto mais o pregador se sente o “representante” de Deus em lugar da sua Palavra, mais ornado, alto e central tende a se tornar o espaço onde ele se apresenta.

Não se pode ignorar que muitos desses líderes — mesmo os que distorceram o uso do púlpito — eram reconhecidos como cristãos por suas comunidades. Isso nos lembra que a história da Igreja é feita também de contradições e pecados. Não devemos negar que erros doutrinários, autoritarismo e heresias ocorreram dentro da própria institucionalidade cristã. A função do púlpito, nesse cenário, foi muitas vezes sequestrada para legitimar projetos pessoais. Assim como os fariseus e saduceus a quem Jesus criticava por “amarem os primeiros lugares nas sinagogas e as saudações nas praças” (Mt 23.6-7), houve — e ainda há — quem veja o púlpito como trono, e não como lugar de cruz e serviço.

Importante dizer, no entanto, que o problema não está na estética do púlpito em si, mas na intenção que a motiva e sustenta. Um púlpito pode ser simples e ainda assim servir ao orgulho, ou ornamentado e ainda assim ser humilde. O que se critica aqui é a estética exagerada motivada pelo ego e pela vontade de domínio. Quanto mais inchado de si está o pregador, mais o púlpito se torna objeto de glorificação pessoal. O símbolo que deveria elevar a Palavra passa a exaltar o homem.

Portanto, o risco da estética exagerada do púlpito não reside em sua madeira, altura ou ornamentos, mas na alma de quem o ocupa. O púlpito é um espaço sagrado não por si, mas por quem é anunciado ali. Sempre que o homem busca no púlpito a confirmação de sua glória, desvia-se da cruz de Cristo. Sempre que o púlpito é transformado em palco de vaidade, a Escritura é rebaixada ao status de ferramenta retórica. A solução, como veremos nos pontos seguintes, está em recuperar o espírito de serviço, humildade e centralidade bíblica, sem negar a beleza e o valor simbólico que o púlpito pode (e deve) carregar.

3. A modernidade e a tentação da ausência: o púlpito como irrelevante

A modernidade, com suas nuances múltiplas e paradoxais, trouxe para o seio da Igreja um novo modo de perceber a espiritualidade, os símbolos e, por conseguinte, o próprio púlpito. Muitos contextos eclesiásticos contemporâneos têm optado por suprimir o púlpito — tanto em termos físicos quanto simbólicos — em nome de uma proposta mais inclusiva, informal e “relevante” para os tempos atuais. Mas até que ponto essa mudança é apenas estética? E em que medida ela compromete a centralidade da pregação bíblica?

A estética do púlpito elevada e ornamentada das eras anteriores é frequentemente criticada como símbolo de autoritarismo e hierarquia — uma crítica válida sob muitos aspectos. No entanto, ao descartarmos o púlpito por completo ou ao torná-lo um simples apoio minimalista ou mesmo inexistente, corremos o risco de diluir aquilo que ele simbolizava: a centralidade da Palavra de Deus como autoridade final na vida da Igreja.

Vivemos em uma era que Zygmunt Bauman caracterizou como “modernidade líquida”, em que tudo se torna fluido, instável e descartável — inclusive os valores e as estruturas simbólicas. O que antes era sólido e estruturante dá lugar ao transitório e à ausência de formas definitivas. Bauman escreveu que na modernidade líquida, não há compromisso duradouro. As formas sociais e instituições não têm tempo para se solidificar; elas são constantemente desmontadas e reformuladas (Bauman, Modernidade Líquida, 2021).

A Igreja, como corpo inserido nesse tempo, não está imune a essa lógica. A informalidade passou a ser considerada mais relevante do que a reverência. O púlpito, por muitos, é visto como um obstáculo à proximidade entre o pregador e a congregação. Daí o surgimento de plataformas niveladas, da substituição do púlpito por banquinhos, estantes transparentes, ou pela total ausência de qualquer suporte simbólico que indique que ali se proclama uma Palavra que ultrapassa o humano.

Mas há um risco teológico aqui. Quando tudo é informal e horizontal, nada mais é separado, nada mais é sagrado. O púlpito não é sagrado em si, mas aponta para algo que é: a Palavra de Deus. Sua ausência pode simbolizar — mesmo que involuntariamente — a substituição da pregação bíblica por discursos motivacionais, subjetivos e desprovidos de autoridade. Em muitas igrejas, esse “desaparecimento” do púlpito reflete também a diminuição da pregação como ato profético e teológico. A pregação se torna “fala”, a Palavra se torna “ideia”, o anúncio do Reino se torna “boas intenções”. Byung-Chul Han, filósofo sul-coreano contemporâneo, aprofunda essa leitura ao descrever nossa era como uma sociedade do desempenho esvaziado de sentido.

É como se revivêssemos o mito de um Sísifo moderno, empurrando não uma pedra, mas uma bolha de sabão até o topo da montanha. Essa metáfora é perturbadora — o esforço é grande, mas o objeto é frágil, vazio, efêmero. A pregação em muitas igrejas modernas é como essa bolha: bela, empática, mas destituída de densidade teológica e autoridade bíblica.

É preciso reconhecer que a modernidade também trouxe benefícios. A crítica ao autoritarismo, o rompimento com estruturas opressoras, a abertura ao diálogo e à escuta do outro são frutos positivos do nosso tempo. Contudo, a crítica justa não pode nos levar a abandonar tudo o que havia de bom no antigo. O púlpito elevado de ontem talvez tenha sido símbolo de dominação em alguns casos, mas foi também expressão sincera da convicção de que Deus fala por meio de Sua Palavra, e que isso deve ser honrado com reverência.

Algumas igrejas tentam equilibrar essa tensão mantendo um púlpito mais próximo, mais acessível, sem que isso signifique desprezo pela centralidade das Escrituras. Trata-se de uma tentativa de fazer do púlpito uma “mesa redonda”, em que há comunhão, mas também um lugar claro de escuta da Palavra. O risco, no entanto, está quando esse equilíbrio é rompido e o púlpito se dissolve a tal ponto que já não há mais distinção entre um sermão e uma palestra, entre pregação e coaching, entre profecia e opinião.

Essa situação é mais comum do que parece. Há púlpitos hoje ocupados por pessoas que não foram chamadas a pregar, que não foram preparadas teológica ou espiritualmente, mas que são carismáticas, engraçadas, populares. Assim, sem perceber, a igreja abandona seu compromisso com a exposição fiel das Escrituras. A Palavra cede espaço à performance.

O desaparecimento simbólico do púlpito, portanto, é mais do que uma mudança estética — é um sintoma da crise espiritual da Igreja contemporânea. Como afirmou Martyn Lloyd-Jones, a principal necessidade da igreja hoje — e sempre — é a pregação verdadeira (Pregação e Pregadores, 1971).

Dizer que o púlpito deve desaparecer por completo é como afirmar que a pregação bíblica pode ser reduzida a um discurso qualquer. E isso, teologicamente, é inaceitável. O púlpito pode — e deve — ser reinventado, ressignificado, mas não abandonado. Pois enquanto houver púlpito, há ainda um espaço simbólico onde se espera que a Palavra de Deus seja anunciada — com autoridade, com temor e com graça.

4. O ponto de equilíbrio: símbolo sem idolatria, centralidade sem autoritarismo

Ao longo da história da igreja, o púlpito sempre foi mais do que um móvel. Ele é símbolo da centralidade da Palavra de Deus na vida da comunidade cristã. Porém, como todo símbolo, corre o risco de ser idolatrado, estetizado em excesso, ou, na reação contrária, ser abandonado como algo ultrapassado. Encontrar um ponto de equilíbrio — em que o púlpito permaneça um sinal visível da presença da Palavra, sem se tornar um pedestal de poder ou um ícone vazio — é um dos grandes desafios contemporâneos da liturgia eclesial.

Na tradição reformada, o púlpito era intencionalmente colocado no centro do templo, mais alto que os demais elementos, para expressar simbolicamente a autoridade da Palavra de Deus sobre a igreja. Isso remonta, por exemplo, às práticas de João Calvino em Genebra. Ele acreditava que a pregação da Palavra de Deus é o instrumento ordinário pelo qual o Espírito Santo comunica a graça aos eleitos (Institutas da Religião Cristã). Assim, o púlpito não era um trono, mas um pedestal da Escritura — não do homem, mas da Palavra viva.

Contudo, há um risco real: quando o símbolo passa a ser mais valorizado do que aquilo que ele representa. Quando a estética do púlpito — o seu tamanho, a sua riqueza, a sua imponência — passa a atrair mais atenção do que o conteúdo da pregação, cria-se um deslocamento do foco. Em vez de ser um instrumento a serviço da Palavra, ele se torna uma plataforma para vaidades. O profeta Isaías já alertava que o povo se apegava a aparências religiosas enquanto seus corações estavam longe de Deus (Isaías 29:13). Isso pode ser facilmente aplicado ao exagero estético do púlpito moderno.

A supervalorização do púlpito pode ainda reforçar um modelo eclesiástico hierárquico e autoritário, no qual o pregador é visto como alguém distante, elevado, separado do povo. Embora a Escritura reconheça dons e funções distintas no Corpo de Cristo (Efésios 4:11-12), também deixa claro que “quem quiser ser o maior entre vós, será vosso servo” (Mateus 23:11). O púlpito, nesse sentido, precisa ser ressignificado não como local de dominação, mas de serviço: uma mesa da Palavra, onde o alimento espiritual é compartilhado com humildade.

A tendência moderna de eliminar o púlpito ou substituí-lo por uma estética “mais leve” pode parecer à primeira vista um avanço para aproximar o pregador do povo. No entanto, isso também pode carregar um risco sutil: diluir o sentido de solenidade e de consagração da pregação, colocando-a no mesmo nível de qualquer discurso motivacional ou palestra secular. O pastor John Stott advertia que a pregação é indispensável à saúde espiritual da igreja (Stott, Como Preparar Sermões Expositivos), e sua banalização pode resultar numa comunidade biblicamente anêmica.

Eliminar ou minimizar o púlpito pode, inconscientemente, comunicar à igreja que a pregação perdeu seu lugar de destaque. Embora a fé não deva ser sustentada por tradições vazias (Marcos 7:8), os símbolos têm poder pedagógico e espiritual. O púlpito remete ao passado da fé cristã, conecta a igreja atual com gerações anteriores e visualmente ensina que há uma centralidade do ensino das Escrituras no culto cristão.

Portanto, não se trata de defender o retorno a púlpitos barrocos ou entronizados. Tampouco de promover uma iconoclastia moderna que elimine qualquer forma de símbolo. Trata-se de recuperar a dimensão pastoral, humilde e participativa do púlpito. Um espaço onde o pregador esteja sim em destaque — mas para apontar para Cristo, e não para si mesmo. Onde o povo escute — mas como quem participa do processo, e não como audiência passiva. Onde a Palavra seja central — e o símbolo seja apenas sua moldura, não seu substituto.

O púlpito deve ser um lugar de encontro: entre a Palavra e o povo, entre o céu e a terra, entre a verdade revelada e a comunidade redimida. Nem trono, nem relíquia, nem palco. O púlpito é sinal da vocação ministerial do ensino, da condução e do consolo, realizado em nome do Senhor da Igreja. Ao redescobrirmos esse equilíbrio, restauramos também a beleza do que significa ser uma comunidade centrada na Palavra, mas moldada pela graça.

5. O púlpito é lugar de pregação e ensino bíblico: a distinção necessária

Na tradição cristã, o púlpito sempre ocupou uma posição de destaque, não apenas como um móvel funcional, mas como um símbolo da centralidade da Palavra de Deus na vida e na liturgia da igreja. A Escritura é clara ao distinguir a proclamação da Palavra como uma responsabilidade espiritual singular: “Pregue a palavra, esteja preparado a tempo e fora de tempo, repreenda, corrija, exorte com toda a paciência e doutrina” (2Tm 4.2). Essa exortação de Paulo a Timóteo define o púlpito como espaço reservado à proclamação fiel das Escrituras. No entanto, tem se tornado cada vez mais comum que esse espaço sagrado seja invadido por discursos técnicos, políticos, ou mesmo promocionais, esvaziando sua função essencial.

É fundamental reconhecer que os saberes da psicologia, sociologia, filosofia, educação e ciência são bênçãos comuns de Deus à humanidade, e têm seu lugar no contexto comunitário da igreja — em seminários, rodas de conversa, estudos e formações. Contudo, a pregação bíblica não pode ser confundida com esses saberes, por mais nobres que sejam. Precisamos entender que a pregação é o meio ordinário pelo qual o Espírito aplica a Palavra de Deus ao coração do ouvinte. A pregação, portanto, é mais do que instrução: é meio de graça. Dar ao púlpito uma função plural, indistinta, relativiza sua vocação como canal da verdade revelada.

Teologicamente, essa confusão traz riscos sérios. A autoridade do púlpito não emana do carisma do pregador, nem da relevância imediata do tema, mas da Palavra que ali é exposta. John Stott enfatiza que nada deve competir com a centralidade da Escritura na vida da igreja (Ouça o Espírito, ouça o mundo, 2008). Quando o púlpito é usado para temas seculares, mesmo bem-intencionados, o resultado pode ser o obscurecimento da distinção entre o que é revelado por Deus e o que é produto da razão humana. Assim, corre-se o risco de tornar equivalente o que deveria ser hierarquizado: todo conhecimento é útil, mas somente a Palavra é salvadora (Jo 17.17).

Historicamente, os reformadores como Lutero e Calvino restauraram o púlpito ao centro da liturgia protestante justamente por entenderem que “a fé vem pelo ouvir, e o ouvir pela Palavra de Cristo” (Rm 10.17). O retorno à centralidade da Escritura nos cultos foi uma resposta ao misticismo e à superstição medievais. Esse retorno, no entanto, não era puramente estético: não se tratava apenas de mover um móvel, mas de colocar novamente a Bíblia como critério absoluto da fé. Quando transformamos o púlpito em palanque para agendas humanas — sejam elas políticas, motivacionais ou científicas — voltamos à confusão simbólica que a Reforma buscou desfazer.

Por fim, reafirmar a exclusividade da Palavra no púlpito não é idolatria ao móvel ou à estética do culto, mas expressão de reverência à revelação divina. Como adverte Martyn Lloyd-Jones, a maior necessidade da igreja hoje é a pregação, verdadeira pregação bíblica (Pregação e Pregadores, 2012). O púlpito é o local onde Cristo é anunciado, onde a fé é formada e onde a igreja é edificada. Não se trata de limitar os saberes, mas de dar a cada coisa o seu devido lugar. A ciência, a cultura e a política têm valor, mas não são evangelho. E o púlpito, por sua natureza e propósito, deve ser o lugar onde apenas o evangelho tem a primazia.

Conclusão

O púlpito continua sendo, em sua essência, um símbolo precioso da centralidade da Palavra de Deus na vida da igreja. No entanto, ao longo da história, os exageros estéticos e simbólicos o transformaram, por vezes, em instrumento de autoritarismo ou em fetiche litúrgico. Na modernidade, por outro lado, o risco inverso tem se intensificado: o desaparecimento do púlpito como espaço distinto e sagrado, rebaixando a pregação bíblica ao nível de qualquer outro discurso. Nem a estetização do púlpito como trono eclesiástico, nem a sua eliminação em nome da informalidade comunicacional fazem justiça ao papel que a pregação deve exercer na comunidade cristã.

Recuperar o púlpito como altar da Palavra é um chamado à humildade e ao serviço, não à exaltação de personalidades. A centralidade da pregação na adoração cristã não vem do pregador, mas da Palavra que é anunciada. A autoridade não está no orador, mas na Escritura. É por isso que os reformadores insistiam que o púlpito não pertence ao homem, mas ao próprio Cristo, que fala por meio da Escritura pregada.

Assim, este artigo propõe uma síntese crítica e propositiva: manter o púlpito como instrumento de edificação espiritual, submetido à autoridade das Escrituras, moldado pela humildade do servo e guiado por critérios teológicos e estéticos coerentes com o evangelho. A igreja contemporânea precisa dessa revalorização para não perder sua alma no ruído dos discursos alternativos, nem repetir os erros de uma pompa que obscurece a simplicidade poderosa da Palavra de Deus. O púlpito, em sua sobriedade e função, deve continuar a ser o lugar onde o Verbo se faz ouvir — e não o local onde egos se fazem notar.

Referências Bibliográficas

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2021.

CALVINO, João. As Institutas. São Paulo: Cultura Cristã, 2006.

HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. São Paulo: Vozes Nobilis, 2024.

LEV, Elizabeth. The Art of Preaching and the Art of the Pulpit. In: Catholic World Report, 2017. Disponível em: https://www.catholicworldreport.com/2017/11/26/the-art-of-preaching-and-the-art-of-the-pulpit/. Acesso em: [coloque a data de acesso].

LLOYD-JONES, Martyn. Pregação e pregadores. São Paulo: Fiel, 2019.

OLD, Hughes Oliphant. The Reading and Preaching of the Scriptures in the Worship of the Christian Church: The Age of the Reformation. Grand Rapids: Eerdmans, 2002.

STOTT, John. Como preparar sermões expositivos.

STOTT, John. Ouça o Espírito, ouça o mundo. Viçosa: Ultimato, 2008.

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Casado com Janaína e pai do Ulisses. Tutor da Zaira (Chow-Chow) e do Paçoca (hamster). Escritor por hiperfoco e autista de nascença. Membro e presbítero da Igreja REMIDI e missionário pelo PRONASCE. Teólogo, Filósofo e Pedagogo em formação. Especialista em Docência do Ensino Superior e em Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva. Meus autores preferidos são: Agostinho, Kierkegaard, João Wesley, Karl Barth, Bonhoeffer, Tillich, C. S. Lewis, Stott e alguns pais da igreja. Meus hobbys são: ler, assistir filmes e séries.

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