Quando a Meritocracia Usurpa o Evangelho

No cenário eclesiástico contemporâneo, surgem diversas justificativas para a disparidade financeira entre pastores e suas comunidades, muitas vezes permeadas por uma visão de meritocracia influenciada pelo capitalismo. Recentemente, duas declarações captaram minha atenção, ambas refletindo essa mentalidade de forma preocupante. A primeira alegava que um pastor deve ter seu padrão de vida ajustado ao contexto econômico de sua congregação: pastores em igrejas ricas deveriam viver em conforto e abundância, enquanto aqueles em comunidades pobres estariam condenados a uma vida mais humilde. A segunda justificativa afirmava que é natural que pastores famosos recebam maiores ofertas do que aqueles menos conhecidos, pois o primeiro “trabalhou” por seu sucesso.

Essas declarações, à primeira vista, podem parecer coerentes em um mundo regido pelo capitalismo e pelo mérito individual. Entretanto, ao analisá-las à luz do Evangelho de Cristo e da teologia paulina, torna-se evidente que estamos diante de uma perigosa distorção da mensagem bíblica. No cerne dessa distorção está a acepção de pessoas, algo que as Escrituras reiteradamente condenam (Tiago 2:1-4). No Reino de Deus, a fama, o status e o sucesso medidos pelo mundo não têm lugar; o que prevalece é o amor, a justiça e a igualdade diante do Pai.

A Meritocracia no Ministério Pastoral

A ideia de que o pastor de uma igreja em um bairro abastado deve ter sua vida financeira ajustada ao contexto de seus congregados reflete uma profunda aceitação da meritocracia. Meritocracia, em sua essência, é a crença de que os indivíduos devem receber de acordo com seus méritos, conquistas e trabalho. Esta filosofia encontra grande ressonância no capitalismo, que valoriza o acúmulo de riqueza como um reflexo do esforço individual. Contudo, ao transpor essa lógica para o ministério pastoral, criamos uma dicotomia perigosa que contradiz o cerne do Evangelho.

Jesus, ao longo de seu ministério, nunca cobrou ou exigiu um padrão de vida baseado no contexto de suas audiências. Ele serviu tanto aos ricos quanto aos pobres, sem fazer acepção de pessoas. O ministério de Cristo não estava condicionado ao status econômico dos seus seguidores, mas sim ao serviço abnegado e ao amor indiscriminado. Quando Ele declarou que o Filho do Homem não tinha “onde reclinar a cabeça” (Mateus 8:20), Jesus não estava sugerindo que vivia na miséria por estar entre os pobres, mas que sua missão transcendeu as preocupações materiais e financeiras que governam as sociedades humanas.

Paulo, o apóstolo que se tornou a principal figura do Cristianismo entre os gentios, é outro exemplo crucial. Em suas cartas, Paulo destaca sua disposição de viver tanto com fartura quanto com necessidade (Filipenses 4:12). No entanto, nunca o vemos buscando enriquecimento por estar em igrejas abastadas ou aceitando a pobreza como destino por estar em comunidades carentes. Pelo contrário, Paulo se recusou a receber sustento financeiro dos coríntios para não ser um peso àquela comunidade (1 Coríntios 9:12-18). Ele entendeu que o ministério não deveria ser mercantilizado, e sua recompensa não era material, mas espiritual.

A Acepção de Pessoas e o Evangelho

A meritocracia no ministério pastoral sugere, erroneamente, que alguns pastores merecem mais devido ao seu contexto ou à sua notoriedade. Este tipo de raciocínio não só perpetua desigualdades, mas também vai contra o espírito de igualdade e justiça proclamado por Cristo. O apóstolo Tiago é enfático ao afirmar que a igreja não deve fazer distinção entre os ricos e os pobres (Tiago 2:1-4). A acepção de pessoas é um pecado, pois promove a injustiça e a desigualdade dentro do corpo de Cristo.

Quando uma igreja decide que um pastor famoso merece mais do que um pastor desconhecido, ou que um pastor em uma comunidade rica deve viver em luxo enquanto outro em um contexto pobre deve aceitar a privação, estamos adotando uma mentalidade secular que é contrária ao Evangelho. No Reino de Deus, a medida do valor de uma pessoa não é determinada por sua riqueza, fama ou posição, mas pelo amor que ela demonstra a Deus e ao próximo (Mateus 22:37-40).

Riqueza e Pobreza no Contexto Bíblico

O Evangelho não endossa as divisões socioeconômicas que encontramos no mundo. Ricos e pobres não são categorias espirituais, mas sim econômicas e políticas. O Novo Testamento não nos encoraja a aceitar essas divisões como inevitáveis ou normais dentro da igreja. Pelo contrário, a igreja primitiva é um exemplo de solidariedade e justiça econômica. Em Atos 2 e 4, vemos que os primeiros cristãos vendiam seus bens e propriedades para que não houvesse necessitados entre eles (Atos 2:44-45; 4:34-35). O princípio que guiava a igreja não era o acúmulo de riqueza, mas a partilha. Os que tinham, davam aos que não tinham, de modo que as necessidades de todos fossem atendidas.

Paulo também seguiu esse princípio quando organizou coletas para ajudar as igrejas mais necessitadas, como a igreja de Jerusalém (2 Coríntios 8-9). Ele encorajava as igrejas gentias, muitas das quais eram mais prósperas, a partilhar seus recursos com as comunidades judaicas empobrecidas. Essa prática não era opcional, mas parte do chamado cristão à solidariedade e à justiça. Em vez de justificar a riqueza de uns e a pobreza de outros, Paulo promovia a igualdade e a generosidade entre as igrejas.

A Inversão de Valores no Mundo Moderno

Hoje, muitas igrejas caíram na armadilha de pensar como o mundo. Ao adotar os valores do capitalismo e da meritocracia, elas se esquecem do chamado bíblico à igualdade e à justiça. A sociedade moderna valoriza o sucesso, a fama e a riqueza, e infelizmente essas métricas têm infiltrado a igreja. Quando justificamos que um pastor famoso merece mais devido a sua notoriedade ou que um pastor em uma igreja rica deve viver em luxo, estamos esquecendo que o ministério pastoral não é uma carreira ou um negócio. É um chamado ao serviço, à humildade e ao amor.

A igreja de Cristo é chamada a ser uma comunidade contra-cultural, que se recusa a aceitar as divisões e desigualdades que o mundo impõe. Pastores, sejam eles famosos ou desconhecidos, ricos ou pobres, são chamados a viver uma vida de serviço sacrificial, modelando sua vida pelo exemplo de Cristo, que se esvaziou de sua glória para servir aos outros (Filipenses 2:5-8). A riqueza e a fama não são medidas de sucesso no Reino de Deus. O sucesso no Reino é medido pelo amor, pela justiça e pela fidelidade ao Evangelho.

Conclusão

O ministério pastoral não deve ser governado pelos princípios da meritocracia ou do capitalismo. Fama, riqueza e status não têm lugar no Reino de Deus, onde todos são iguais aos olhos do Pai. As declarações que justificam a disparidade financeira entre pastores famosos e desconhecidos, ou entre pastores que servem em contextos ricos e pobres, refletem uma mentalidade mundana que distorce o Evangelho.

Como igreja, precisamos voltar ao fundamento bíblico de igualdade, generosidade e justiça. O pastor, como qualquer outro cristão, é chamado a seguir o exemplo de Cristo, servindo a todos sem fazer acepção de pessoas. O que tem mais, deve compartilhar com o que tem menos, e todos, ricos e pobres, devem se ver como irmãos e irmãs em Cristo, igualmente amados e igualmente chamados ao serviço no Reino de Deus. Que possamos resistir às tentações do mundo e viver consoante o Evangelho da graça, onde ninguém vale mais do que o outro, e todos são igualmente dignos diante de Deus.

Perguntas para Refletir

  1. Como o conceito de meritocracia influencia nossa visão sobre o valor de pastores e líderes na igreja?
  2. O Evangelho de Cristo endossa as desigualdades financeiras entre pastores em diferentes contextos?
  3. De que maneira podemos resgatar a prática da igualdade e generosidade no corpo de Cristo, conforme o exemplo de Jesus e dos apóstolos?

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Casado com Janaína e pai do Ulisses. Tutor da Zaira (Chow-Chow) e do Paçoca (hamster). Escritor por hiperfoco e autista de nascença. Membro e presbítero da Igreja REMIDI e missionário pelo PRONASCE. Teólogo, Filósofo e Pedagogo em formação. Especialista em Docência do Ensino Superior e em Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva. Meus autores preferidos são: Agostinho, Kierkegaard, João Wesley, Karl Barth, Bonhoeffer, Tillich, C. S. Lewis, Stott e alguns pais da igreja. Meus hobbys são: ler, assistir filmes e séries.

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