A Sinceridade Inconveniente da Pessoa Autista

A sinceridade do autista é vista como rudeza, mas nasce de autenticidade. Uma reflexão sobre verdade, empatia e neurodiversidade.

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É curioso como a sociedade prega a importância da autenticidade, mas parece entrar em colapso quando encontra alguém que a pratica em sua forma mais pura. O autista, aquele sujeito que fala o que pensa sem adornos, sem os floreios exigidos pela etiqueta social, acaba sendo tachado de ríspido, inconveniente ou até insensível. O mais intrigante, contudo, é que não são outros autistas que o percebem assim, mas sim as pessoas neurotípicas — ou, como muitos autistas têm preferido chamar, os alistas.

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A ironia é evidente: o mesmo grupo que defende a empatia como um valor universal parece ter dificuldades em aplicá-la quando a diferença cognitiva é o que está em jogo. Estudos em neurociência têm demonstrado que o cérebro autista possui estruturas e conexões distintas das de pessoas neurotípicas, o que impacta diretamente as formas de comunicação e socialização (Just et al., 2007; Ecker et al., 2012). Essa diferença, longe de ser um “defeito”, é uma variação natural no espectro da neurodiversidade — um conceito que propõe compreender as diferenças neurológicas como variações legítimas da condição humana, e não como patologias a serem corrigidas (Singer, 1999).

De fato, pesquisas mostram que o córtex pré-frontal e o sistema de conectividade global no cérebro autista operam de modo distinto, favorecendo um pensamento lógico, detalhista e literal, e dificultando a leitura das sutilezas sociais e das intenções implícitas (Just et al., 2007). Em outras palavras, enquanto a mente neurotípica tende a “ler o ambiente social” de forma intuitiva, a mente autista busca a coerência lógica — e não a performática. Daí o choque cultural: para muitos neurotípicos, as interações sociais são um jogo implícito de gestos, tons e omissões; para o autista, esse jogo é simplesmente indecifrável e, francamente, desnecessário.

É importante frisar que isso não significa que a pessoa autista seja incapaz de empatia. Diversos estudos têm demonstrado que autistas não possuem menos empatia, mas sim uma forma diferente de expressá-la, baseada em princípios racionais e não em convenções sociais (Smith, 2009; Milton, 2012). O problema, portanto, não é a falta de empatia, mas a incompatibilidade entre estilos de comunicação — um desencontro que o pesquisador Damian Milton (2012) denominou “problema da dupla empatia”. Em síntese, o mal-entendido é mútuo: tanto autistas quanto neurotípicos têm dificuldade em compreender o modo de funcionamento do outro.

Mas, claro, para o olhar neurotípico, é sempre o autista quem “precisa se adaptar”. A expectativa de que o autista aprenda técnicas de socialização e disfarce suas reações — prática conhecida como masking ou mascaramento — é vista como uma solução “inclusiva”. Porém, mascarar custa caro. O esforço constante de suprimir o próprio modo natural de ser para parecer “normal” tem sido associado a altos índices de exaustão, depressão e até suicídio entre pessoas autistas, especialmente mulheres e adultos diagnosticados tardiamente (Hull et al., 2017). Fingir ser o que não se é não constitui inclusão; é apenas opressão educada.

A honestidade direta, tão malvista nos círculos sociais neurotípicos, é para o autista uma expressão de respeito. Quando um autista diz o que pensa, ele o faz sem intenção de ferir — apenas de ser claro. Já o neurotípico, acostumado a rodeios, inferências e estratégias de polidez, sente-se desarmado diante de tamanha literalidade. Talvez o incômodo maior não seja a “frieza” do autista, mas o espelho que ele oferece a uma sociedade acostumada à dissimulação travestida de gentileza.

Reconhecer a neurodiversidade exige mais do que tolerância — requer humildade cognitiva. Significa aceitar que há múltiplas maneiras legítimas de pensar, sentir e interagir. O cérebro autista não é defeituoso, é apenas diferente. E diferença não é déficit. Como lembra Baron-Cohen (2017), “a neurodiversidade deve ser celebrada como a biodiversidade: um sinal de vitalidade e complexidade humana”.

Talvez o desafio esteja justamente aí: perceber que o autista não está jogando o jogo social porque, para ele, não há jogo. Há apenas diálogo — e verdade. E se a sinceridade ainda causa tanto desconforto, talvez o problema não esteja em quem a pratica, mas em quem se ofende com ela.

Referências

BARON-COHEN, Simon. Editorial Perspective: Neurodiversity – a revolutionary concept for autism and psychiatry. Journal of Child Psychology and Psychiatry, v. 58, n. 6, p. 744-747, 2017. DOI: 10.1111/jcpp.12703. Disponível em: https://doi.org/10.1111/jcpp.12703. Acesso em: 08 ago 2025.

ECKER, Christine; SUCKLING, John; DEONI, Sean C.; LOMBARDO, Michael V.; et al. Brain anatomy and its relationship to behavior in adults with autism spectrum disorder: a multicenter magnetic resonance imaging study. Archives of General Psychiatry, v. 69, n. 2, p. 195-209, 2012. DOI: 10.1001/archgenpsychiatry.2011.1251. Disponível em: https://jamanetwork.com/journals/jamapsychiatry/fullarticle/1107445. Acesso em: 08 ago 2025.

HULL, Laura; MANDY, William; LAI, Meng-Chuan; et al. “Putting on My Best Normal”: Social Camouflaging in Adults with Autism Spectrum Conditions. Journal of Autism and Developmental Disorders, v. 47, p. 2519-2534, 2017. DOI: 10.1007/s10803-017-3166-5. Disponível em: https://link.springer.com/article/10.1007/s10803-017-3166-5. Acesso em: 08 ago 2025.

JUST, Marcel Adam; CHERKASSKY, Vladimir L.; KELLER, Timothy A.; KANA, Rajesh K.; MINSHEW, Nancy J. Functional and anatomical cortical underconnectivity in autism: evidence from an fMRI study of an executive function task and corpus callosum morphometry. Cerebral Cortex, v. 17, n. 4, p. 951-961, 2007. DOI: 10.1093/cercor/bhl006. Disponível em: https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/16772313/ ou https://pmc.ncbi.nlm.nih.gov/articles/PMC4500121/. Acesso em: 08 ago 2025.

MILTON, Damian. On the ontological status of autism: the ‘double empathy problem’. Disability & Society, v. 27, n. 6, p. 883-887, 2012. DOI: 10.1080/09687599.2012.710008. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/09687599.2012.710008. Acesso em: 08 ago 2025.

SMITH, A. The empathy imbalance hypothesis of autism: a theoretical approach to cognitive and emotional empathy in autistic development. The Psychological Record, v. 59, p. 489-510, 2009. Disponível em: The Empathy Imbalance Hypothesis of Autism: A Theoretical Approach to Cognitive and Emotional Empathy in Autistic Development | The Psychological Record. Acesso em: 08 ago 2025.

SINGER, Judy. Why can’t you be normal for once in your life? From a “problem with no name” to the emergence of a new category of difference. In: CORKER, M.; FRENCH, S. (org.). Disability Discourse. Buckingham: Open University Press, 1999. Disponível em: Detalhes: Why can’t you be normal for once in your life? from a problem with no name to the emergence of a new category of … › ISPA catálogo. Acesso em: 08 ago 2025.

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Paulo Freitas

Paulo Freitas

Paulo Freitas é teólogo, filósofo, professor e presbítero. Autista, escreve sobre fé, fragilidade, dor, neurodiversidade e tudo o que nos torna profundamente humanos.

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