O Pássaro Não Precisa Explicar seu Voo

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Há um pássaro pousado no meu peito. Ele não canta como os outros, não voa no mesmo ritmo, não escolhe os mesmos galhos. Às vezes, ele se esconde quando o mundo fala alto demais. Outras, ele se perde em cantos que só ele enxerga. Mas ele não está errado. Ele só é pássaro de um jeito diferente.

Hoje é 2 de abril, Dia Mundial de Conscientização do Autismo, e eu queria dizer algo bonito, algo que fizesse você entender. Mas a verdade é que talvez você nunca vá entender de verdade — assim como eu nunca vou entender completamente como é ser você, neurotípico1, navegando o mundo com uma bússola que nunca treme nas suas mãos.

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Você já tentou explicar por que respira? Já tentou descrever a cor do céu para alguém que nunca enxergou? É assim que às vezes me sinto: como um pássaro tentando contar o que é voar, quando, para mim, voar nunca foi uma escolha — só existência. Ser autista não é um “modo de ser”, não é um traço de personalidade, não é um quebra-cabeça a ser decifrado. É simplesmente o meu céu, o meu ar, a minha forma de bater as asas.

Mas há coisas que doem. Dói quando as palavras grudam na garganta e não saem. Dói quando o barulho do mundo parece uma faca cortando os meus pensamentos. Dói quando me dizem que é “só uma textura”, “só um cheiro”, “só uma luz”, porque para mim nunca é “só”. É um furacão. E o que eu queria que você soubesse é que não é birra, não é frescura — é o meu corpo gritando que está em chamas enquanto você só vê fumaça.

Nós, autistas, aprendemos desde cedo a imitar vocês. A sorrir quando não sentimos vontade, a olhar nos olhos mesmo que queime, a engolir comidas que nos enchem de náusea só para não sermos “difíceis”. Aprendemos a nos dobrar para caber em um mundo que não foi feito para nós. E tudo o que pedimos é que, às vezes, vocês se desdobrem um pouco também.

Se não entender, tudo bem. Mas respeite. Se não souber como agir, pergunte. Se vir um de nós sozinho, não assuma que é por não gostar de gente — pode ser só que estamos cansados, que precisamos recarregar as asas antes do próximo voo. E se você tiver paciência para esperar, talvez descubra que, por trás do nosso silêncio, há universos inteiros esperando para serem compartilhados.

No fim, não precisamos que você entenda o autismo. Só precisamos que você entenda que somos humanos, tão cheios de luz e de sombra quanto qualquer um. E que, às vezes, o maior ato de amor não é decifrar o voo do pássaro, mas simplesmente deixar que ele voe.


  1. Neurotípico é alguém que tem o funcionamento do cérebro comum ou semelhante à maioria das pessoas. Aquele que não é autista. ↩︎
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Paulo Freitas

Paulo Freitas

Paulo Freitas é teólogo, filósofo, professor e presbítero. Autista, escreve sobre fé, fragilidade, dor, neurodiversidade e tudo o que nos torna profundamente humanos.

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