O Silêncio das Amizades que Nunca Vieram

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Uma das maiores dores silenciosas entre pessoas autistas é a ausência de amizades verdadeiras. Não se trata apenas de não ser querido ou de não estar cercado por gente; trata-se de nunca ter, de fato, experimentado a cumplicidade mútua, aquela que nasce da troca de dores, segredos, medos e sonhos. Amizade, em sua essência mais profunda, é uma forma de abrigo onde duas verdades se encontram e escolhem permanecer. Para muitos autistas, essa casa nunca foi construída — ou foi, e rapidamente demolida.

A psicologia das relações humanas mostra que a amizade depende de abertura emocional, reciprocidade e tempo. No entanto, para pessoas autistas, a abertura emocional é um processo extremamente complexo. Não porque não haja emoção — muito pelo contrário —, mas porque a sensibilidade, quando não compreendida, se transforma em dor. A mente autista funciona de forma distinta: ela precisa de segurança concreta, de sinais claros de que o outro é digno de confiança. Essa construção demanda tempo — algo que, infelizmente, muitas pessoas não estão dispostas a oferecer.

Há um paradoxo cruel aqui: para que a amizade aconteça, é preciso se abrir. Mas para se abrir, é preciso confiar. E para confiar, é preciso que a relação dure tempo suficiente para que se perceba quem é o outro. Enquanto isso, o outro interpreta o silêncio como frieza, a distância como desinteresse, a hesitação como rejeição. E a amizade que poderia ter sido nunca se torna.

Mais cruel ainda é quando essa tentativa de confiança resulta em abuso. Pessoas autistas, ao não saberem com quem podem se abrir, acabam escolhendo mal — e se tornam alvo de zombarias, chantagens ou exclusões. Quando o abuso vem de figuras que deveriam representar acolhimento, como líderes religiosos, o trauma é ainda mais profundo. Fere não apenas a alma, mas também a fé no outro e em Deus.

Ao longo da vida, algumas pessoas parecem ver em nós algo que transmite sabedoria, serenidade, confiabilidade. E de fato, muitos autistas são exímios ouvintes e conselheiros. Porém, a via contrária nem sempre acontece. Poucos ficam tempo suficiente para que possamos confiar, e menos ainda sabem esperar sem exigir ou julgar. A maioria se vai antes que a ponte esteja pronta, e o autista permanece na margem, com o coração cheio, mas as mãos vazias.

Não estamos dizendo que ninguém gosta de nós. Muitas vezes, há sim quem goste. Mas gostar é diferente de compartilhar o cotidiano, de dividir a vida, de se tornar parte da história um do outro. O que muitos autistas sentem é a ausência dessa partilha. Estão presentes nas festas, nos grupos de conversa, nos eventos — mas ausentes nos laços profundos. São lembrados, mas raramente esperados. São ouvidos, mas pouco acolhidos.

A dor de não ter uma amizade verdadeira é uma forma de luto que se arrasta ao longo da existência. E quando se encontra, entre pares autistas, um vínculo espontâneo, uma compreensão mútua que não exige explicações, muitas vezes percebe-se que esse vínculo já existia muito antes de qualquer diagnóstico. Era o encontro entre dois mundos silenciosos que se reconhecem no olhar, no tempo respeitado, na escuta sincera.

Este texto não é uma queixa, mas um pedido de escuta. Amizade verdadeira com pessoas autistas exige tempo, paciência e empatia. Mas, acima de tudo, exige que se entenda que o silêncio nem sempre é distância, e que a espera, às vezes longa, é apenas o tempo necessário para que possamos confiar sem medo.

Se há algo que o mundo precisa aprender com os autistas é que a profundidade leva tempo, e que a pressa mata laços antes mesmo que eles nasçam.

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Paulo Freitas

Paulo Freitas

Paulo Freitas é teólogo, filósofo, professor e presbítero. Autista, escreve sobre fé, fragilidade, dor, neurodiversidade e tudo o que nos torna profundamente humanos.

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