A dor, para os seres humanos, é um fator intrínseco e inevitável. Ela é capaz de nos alertar sobre problemas, nos proteger de danos maiores e nos lembrar de nossa fragilidade. No entanto, quando se trata de pessoas autistas, a experiência da dor não é apenas física, mas se desdobra em camadas adicionais que poucos compreendem. A dor no autismo envolve distúrbios sensoriais, dificuldades proprioceptivas e desafios comunicacionais, que, quando não compreendidos, aumentam exponencialmente o sofrimento da pessoa autista. Este artigo visa analisar de maneira crítica e científica as particularidades da dor em indivíduos autistas, as consequências dessa vivência e como podemos auxiliar de forma eficaz.
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A Complexidade da Dor no Autismo
Para as pessoas não-autistas, a dor é geralmente percebida como um evento localizado e mensurável. Ela surge, é comunicada e, com o tratamento adequado, pode ser atenuada ou eliminada. No entanto, para os autistas, essa experiência é intrinsecamente mais complexa. Diversos fatores afetam a percepção e o processamento da dor em indivíduos no espectro autista, incluindo distúrbios sensoriais, dificuldades proprioceptivas e uma comunicação limitada ou atípica.
Uma característica fundamental do autismo é a hipersensibilidade ou a hipossensibilidade a estímulos sensoriais. Para muitos autistas, a dor pode ser amplificada devido a uma hipersensibilidade ao estímulo nociceptivo, tornando-se insuportável, ou, paradoxalmente, ser subestimada ou ignorada devido a uma hipossensibilidade. Assim, mesmo dores intensas podem não ser relatadas, o que complica tanto o diagnóstico quanto o tratamento.
Além disso, a propriocepção — a percepção de onde e como o corpo se encontra no espaço — também pode ser alterada em pessoas autistas. Isso significa que identificar o local exato da dor e o quanto ela está afetando pode se tornar uma tarefa desafiadora. Muitos autistas relatam uma sensação difusa de desconforto, sem saber localizar claramente o ponto da dor, o que prejudica o tratamento eficaz e aumenta a frustração.
A Sobreposição da Dor com os Desafios Emocionais
O impacto da dor vai além do desconforto físico. Para pessoas autistas, a dor pode desencadear uma série de respostas emocionais e comportamentais. As estereotipias (movimentos repetitivos típicos no autismo), por exemplo, podem se intensificar como uma forma de tentar regular o desconforto. Além disso, a experiência prolongada da dor pode levar a crises de meltdown (explosões emocionais em resposta a sobrecargas sensoriais ou emocionais), shutdown (retraimento extremo e dificuldade de resposta) e até burnout autista (esgotamento mental e físico).
É importante destacar que muitas vezes, a dor é a causa oculta desses estados extremos. Quando uma pessoa autista não consegue expressar ou medir a dor, ela acaba se acumulando e gerando estresse emocional. E, por ser algo que não é facilmente reconhecível externamente, a dor invisível torna-se um peso constante, afetando a capacidade de interação social, o desempenho no trabalho ou estudos e até as atividades diárias mais básicas.
O Desafio da Comunicação da Dor
A comunicação sobre a dor já é um desafio significativo para muitos autistas. Perguntar a alguém onde dói, como dói e o quanto dói pode parecer simples, mas para uma pessoa autista, essa tarefa pode ser extremamente complicada. A linguagem típica usada para descrever a dor — como “pulsante”, “latejante” ou “aguda” — pode não ser acessível ou compreensível para todos. Além disso, muitos autistas enfrentam dificuldades na comunicação verbal, e aqueles que não são oralizados e que não têm acesso a uma comunicação alternativa enfrentam um obstáculo ainda maior.
Sem uma comunicação adequada, a dor é subtratada, o que perpetua um ciclo de sofrimento. É como se o próprio corpo se tornasse um inimigo que não é possível compreender e muito menos controlar. A necessidade de uma abordagem mais empática e eficiente na identificação e no manejo da dor é, portanto, urgente.
Estratégias para Auxiliar Pessoas Autistas em Situações de Dor
Diante dessa realidade complexa, o que pode ser feito para ajudar uma pessoa autista que esteja enfrentando dor? Algumas estratégias podem ser adotadas tanto por pais, cuidadores quanto por profissionais da saúde:
- Atenção a Mudanças de Comportamento: Observar mudanças sutis de humor ou comportamento é fundamental. Muitas crianças e adultos autistas não expressam a dor verbalmente, mas demonstram sofrimento por meio de mudanças na rotina, retraimento ou aumento de estereotipias. Quando a pessoa fica mais amuada, irritadiça ou evita interações que costumava apreciar, pode ser um sinal de dor.
- Perguntas Específicas e Diretas: Ao tentar identificar a dor, é importante ser específico. Perguntar “Você está bem?” pode não trazer uma resposta esclarecedora. Perguntas como “Alguma coisa está doendo?” ou “Onde está doendo?” são mais eficazes para obter informações concretas.
- Marcadores de Intensidade da Dor: Usar escalas visuais ou numéricas para medir a dor pode ajudar. Perguntar “De 1 a 10, quanto dói?” pode ser uma forma mais objetiva para que a pessoa autista consiga quantificar o desconforto. Para crianças, desenhos coloridos de faces que representam diferentes graus de dor podem ser úteis.
- Desenhos e Diagramas do Corpo Humano: Outra estratégia eficaz é o uso de desenhos do corpo humano, onde a pessoa pode apontar para a área que dói. Isso pode ser particularmente útil para aqueles que têm dificuldades em verbalizar o local da dor.
- Métodos de Comunicação Alternativa: Para autistas não oralizados ou com dificuldades de comunicação, é essencial disponibilizar métodos alternativos, como tablets ou pranchas de comunicação. O uso de símbolos e ícones pode facilitar a comunicação sobre o local e a intensidade da dor.
- Monitoramento do Ambiente e de Mudanças Sensorialmente Impactantes: A dor pode ser desencadeada ou agravada por estímulos sensoriais excessivos, como luzes fortes, sons altos ou roupas desconfortáveis. Ajustar o ambiente para torná-lo menos estimulante pode ajudar a reduzir o desconforto.
- Criar um Diário de Sintomas: Manter um diário que registre os sintomas e as variações no comportamento pode ser uma ferramenta valiosa para identificar padrões e antecipar crises de dor. Isso pode auxiliar médicos e terapeutas a compreenderem melhor as causas e a frequência da dor.
- Sensibilização e Treinamento de Profissionais de Saúde: Profissionais da saúde devem ser treinados para compreender as particularidades do autismo, especialmente em relação à dor. É comum que os autistas tenham sua dor minimizada ou desconsiderada pelo fato de não expressarem de maneira típica o sofrimento. A formação de profissionais mais empáticos e preparados é essencial para garantir um tratamento adequado.
- Medidas Proativas para Reduzir o Estresse: Como o estresse pode agravar a dor e desencadear crises, adotar medidas proativas para reduzir o estresse é importante. Isso pode incluir práticas de relaxamento, exercícios de respiração, técnicas de mindfulness e o uso de fidgets ou objetos que auxiliem na regulação sensorial.
Reflexões Finais
A dor no autismo não pode ser subestimada ou tratada como algo simples. Ela está envolta em camadas de complexidade que tornam a experiência de cada indivíduo única e, muitas vezes, isolante. Para uma pessoa autista, a dor pode ser difusa, desorganizada e inarticulável, e cada tentativa de comunicação sobre o sofrimento pode ser uma batalha frustrante. Compreender essas particularidades e adotar estratégias eficazes para reconhecer e tratar a dor são passos fundamentais para garantir que pessoas autistas possam ter qualidade de vida e dignidade.
Precisamos de uma abordagem que combine empatia, conhecimento técnico e paciência, pois reconhecer e tratar a dor em autistas significa não apenas diminuir o sofrimento físico, mas também promover um ambiente em que o respeito pela individualidade seja uma prioridade. Dessa forma, podemos caminhar em direção a uma sociedade verdadeiramente inclusiva, onde cada voz — mesmo que silenciosa ou não convencional — seja ouvida e respeitada.
Referências
Resposta à dor em pacientes com autismo de alto funcionamento (bvsalud.org)
DESCONTROLE EMOCIONAL NO AUTISMO – PODE SER DOR. (draberenicecunhawilke.com.br)
Frontiers | Sensory Modulation Disorder (SMD) and Pain: A New Perspective (frontiersin.org)
AUTISMO & DORES – Reconhecendo problemas físicos nas crianças, jovens e adultos autistas – Autimates
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Casado com Janaína e pai do Ulisses. Tutor da Zaira (Chow-Chow) e do Paçoca (hamster). Escritor por hiperfoco e autista de nascença. Membro e presbítero da Igreja REMIDI e missionário pelo PRONASCE. Teólogo, Filósofo e Pedagogo em formação. Especialista em Docência do Ensino Superior e em Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva. Meus autores preferidos são: Agostinho, Kierkegaard, João Wesley, Karl Barth, Bonhoeffer, Tillich, C. S. Lewis, Stott e alguns pais da igreja. Meus hobbys são: ler, assistir filmes e séries.