Uma pessoa jovem sentada sozinha em um ambiente escuro, cercada por grandes engrenagens metálicas e mãos estendidas, transmite solidão, rigidez e opressão.
Autismo,  Neurodiversidade

A Rigidez Cognitiva no Autismo Nível 1 e o Vazio Existencial Silencioso

Imagine viver em um mundo em que qualquer quebra de rotina, qualquer mudança repentina — até mesmo uma simples alteração no caminho habitual — gera um desconforto físico e emocional tão profundo que beira a dor. Não é frescura, não é teimosia, nem uma vontade inconsciente de ser difícil. Para muitas pessoas autistas, sobretudo aquelas com diagnóstico de autismo nível 1 de suporte, isso é uma realidade cotidiana.

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O nome técnico para isso é rigidez cognitiva — uma das características mais marcantes, porém mais incompreendidas, do autismo nesse nível. Trata-se da dificuldade em flexibilizar pensamentos, comportamentos e rotinas. O cérebro autista busca previsibilidade como uma estratégia de sobrevivência diante de um mundo que frequentemente parece caótico, imprevisível e sobrecarregado sensorialmente.

1. O Mito da Mudança e a Realidade da Resignação

Na superfície, parece que alguns autistas, especialmente os diagnosticados na vida adulta, “aprendem” a ser mais flexíveis. Mas isso é, na maioria das vezes, uma falsa percepção social. Na realidade, o que muitas vezes ocorre não é uma mudança genuína, mas um processo doloroso de resignação silenciosa.

Desde a infância, a criança autista é chamada de “teimosa”, “inflexível”, “complicada”, “intransigente”, “prepotente” ou até “insuportável”. As pessoas ao redor, sem entender a raiz neurológica desse comportamento, se afastam, criam barreiras emocionais e, com o tempo, abandonam a convivência. O resultado? Um ciclo de dor silenciosa, solidão e autoanulação.

Essa falsa adaptação gera uma desconexão interna. O autista não deixa de ser rígido por dentro, mas aprende a se calar, a suprimir suas vontades, suas preferências e até mesmo sua identidade. Viver se torna um exercício constante de sobrevivência social, e não de realização pessoal. Surge, então, um vazio existencial, onde o sentido da vida passa a ser evitar o desconforto dos outros, muitas vezes ao custo de abrir mão de si.

2. Neurociência da Rigidez Cognitiva

Estudos apontam que a rigidez cognitiva no autismo tem bases neurobiológicas claras. Pesquisas em neuroimagem mostram alterações na conectividade funcional de regiões como o córtex pré-frontal dorsolateral, responsável pela tomada de decisões e pela flexibilidade cognitiva (Dajani & Uddin, 2015).

Além disso, há disfunções no eixo córtex pré-frontal – gânglios da base – córtex cingulado anterior, que estão diretamente ligados ao processamento de mudanças, ao controle executivo e à capacidade de alternar tarefas e pensamentos (Hill, 2004; Uddin et al., 2015).

Ou seja, não se trata de personalidade difícil ou de falhas no caráter, mas de uma estrutura neurológica distinta que processa o mundo de maneira diferente.

3. Impactos Psicológicos e Sociais

O peso dessa incompreensão social é devastador. Estudos mostram que autistas adultos têm índices alarmantes de depressão, ansiedade, isolamento social e risco aumentado de suicídio (Cassidy et al., 2014). Não é coincidência. A dificuldade de ser aceito como se é, somada às pressões para “se encaixar” em padrões neurotípicos, gera uma luta constante entre sobreviver e desaparecer.

Muitos confundem o isolamento do autista com falta de interesse social. Na verdade, é frequentemente uma auto-proteção contra rejeições sucessivas. O custo psíquico de tentar ser aceito é tão alto que o isolamento passa a ser menos doloroso que a constante tentativa de agradar a um mundo que não os entende.

4. O Que Fazer? Caminhos para a Mudança Coletiva (e Não do Autista)

A questão não é forçar o autista a mudar — é mudar o ambiente, as relações e as perspectivas sociais para que ele não precise se anular.

1. Aceitação Radical e Inclusiva
Aceitar que o cérebro autista funciona diferente, e que isso não é defeito nem precisa ser consertado. Essa aceitação precisa ser prática: respeitar as rotinas, os limites sensoriais e as necessidades específicas.

2. Educação Neurodivergente nas Escolas e Empresas
Programas de conscientização e treinamento sobre neurodiversidade são essenciais. Não se trata de ensinar o autista a ser mais flexível, mas de ensinar os outros a serem mais compreensivos.

3. Apoio Psicológico Especializado
Psicoterapia baseada na aceitação e compromisso (ACT), no modelo cognitivo-comportamental adaptado ao autismo, e nas abordagens que respeitam a neurodivergência, pode ajudar o autista a entender seus próprios processos, não para se anular, mas para viver de maneira mais autêntica.

4. Redes de Apoio
Espaços seguros de convivência entre autistas e entre aliados neurotípicos conscientes são fundamentais para combater o isolamento e o vazio existencial.

5. Combate ao Capacitismo Sutil e Estrutural
O capacitismo não está apenas nas ofensas explícitas, mas nas pequenas pressões diárias para que o autista “seja mais flexível”, “seja menos estranho” ou “seja mais sociável”. É preciso combater essas práticas na raiz.

Conclusão

O desafio não é ser menos autista, é ser mais humano. Quando uma pessoa autista muda de ideia, não é um sinal de que a rigidez acabou — muitas vezes é um sinal de que a dor da solidão foi maior do que a necessidade de manter-se fiel a si mesma. Isso não é transformação; é sobrevivência.

O desafio não está em ensinar o autista a viver como os outros querem, mas em ensinar a sociedade a aceitar, conviver e aprender com a beleza de uma mente que enxerga o mundo de forma única, detalhada e intensa.

Ajudar é, antes de tudo, parar de exigir que o autista mude. E começar, urgentemente, a mudar o mundo.

Fontes Consultadas

Cassidy, S., Bradley, L., Robinson, J., Allison, C., McHugh, M., & Baron-Cohen, S. (2014). Suicidal ideation and suicide plans or attempts in adults with Asperger’s syndrome attending a specialist diagnostic clinic: a clinical cohort study. The Lancet Psychiatry, 1(2), 142-147. https://doi.org/10.1016/S2215-0366(14)70248-2

Dajani, D. R., & Uddin, L. Q. (2015). Demystifying cognitive flexibility: Implications for clinical and developmental neuroscience. Trends in Neurosciences, 38(9), 571–578. https://doi.org/10.1016/j.tins.2015.07.003

Hill, E. L. (2004). Executive dysfunction in autism. Trends in Cognitive Sciences, 8(1), 26–32. https://doi.org/10.1016/j.tics.2003.11.003

Uddin, L. Q., Supekar, K., Lynch, C. J., Khouzam, A., Phillips, J., Feinstein, C., Ryali, S., & Menon, V. (2015). Salience network–based classification and prediction of symptom severity in children with autism. JAMA Psychiatry, 70(8), 869–879. https://doi.org/10.1001/jamapsychiatry.2013.104

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Casado com Janaína e pai do Ulisses. Tutor da Zaira (Chow-Chow) e do Paçoca (hamster). Escritor por hiperfoco e autista de nascença. Membro e presbítero da Igreja REMIDI e missionário pelo PRONASCE. Teólogo, Filósofo e Pedagogo em formação. Especialista em Docência do Ensino Superior e em Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva. Meus autores preferidos são: Agostinho, Kierkegaard, João Wesley, Karl Barth, Bonhoeffer, Tillich, C. S. Lewis, Stott e alguns pais da igreja. Meus hobbys são: ler, assistir filmes e séries.

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