A imagem retrata dois jovens em uma cena delicada e emocionalmente simbólica. Eles estão de frente um para o outro, com os rostos próximos e os olhos fixos, transmitindo serenidade, empatia e conexão profunda. Suas mãos quase se tocam no centro da composição, formando um gesto de sintonia silenciosa. Ao redor deles, ondas suaves em tons pastel — azul, rosa e lilás — criam um ambiente abstrato e acolhedor, como se estivessem envoltos em uma nuvem de sensibilidade mútua. A luz ao fundo é suave e dourada, sugerindo um espaço íntimo de compreensão e aceitação. A cena evoca a ideia de dois autistas se reconhecendo além das palavras — uma comunicação feita de silêncio, sensações e gestos sutis.
Autismo,  Neurodiversidade

Amor no Espectro: Autistas, Afinidades e Relacionamentos Amorosos

O amor é, por essência, um fenômeno complexo — e, quando olhamos através da lente da neurodivergência, essa complexidade se aprofunda e adquire novos contornos. Um tema que vem emergindo com força no campo da neurodiversidade é o fato de que pessoas autistas costumam formar relações afetivas — inclusive casamentos — com outras pessoas autistas, mesmo antes de qualquer diagnóstico formal. Embora faltem estudos quantitativos de longa duração sobre esse fenômeno, já há pesquisas qualitativas e análises científicas que ajudam a compreender essa tendência.

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De forma surpreendente — ou talvez não —, relatos de casais que apenas após anos de relacionamento descobriram que ambos estavam no espectro autista têm se multiplicado em fóruns, comunidades e estudos clínicos. Essa realidade tem se mostrado tão consistente que merece atenção crítica e analítica. Seria uma coincidência? Ou há algo mais profundo e estrutural que une autistas de forma particular?

1. A Teoria da Empatia Mútua: a comunicação entre autistas funciona melhor?

Um dos conceitos fundamentais para entender essa afinidade é a chamada Teoria da Dupla Empatia (Double Empathy Problem), formulada pelo pesquisador autista Damian Milton. De acordo com essa teoria, o problema de comunicação entre autistas e neurotípicos não está exclusivamente nas pessoas autistas, como historicamente se afirmou, mas nas diferenças mútuas e bidirecionais na forma de perceber e interagir com o mundo (Milton, 2012).

Isso significa que autistas tendem a se comunicar melhor entre si porque compartilham experiências sensoriais, linguísticas, sociais e emocionais similares. A troca entre duas pessoas autistas pode parecer “difícil” aos olhos de um neurotípico, mas entre elas pode haver grande fluidez, compreensão implícita e empatia legítima. Isso corrige uma distorção histórica que sempre atribuiu aos autistas uma “falha de empatia”, quando na verdade o que existia era um desencontro de códigos.

2. Três fatores que favorecem relações amorosas entre autistas

Mesmo sem o diagnóstico formal, muitos autistas desenvolvem vínculos com outros autistas. Três hipóteses principais explicam esse fenômeno:

2.1. Afinidade sensorial e comunicacional

Autistas têm modos semelhantes de perceber o mundo, com sensibilidades sensoriais específicas, ritmos de fala próprios e experiências sociais muitas vezes marcadas por dificuldades de adaptação. Essa vivência compartilhada cria um campo de empatia tácita, no qual a relação pode acontecer com menos ruído e mais compreensão mútua — algo que muitos casais neurotípico-autista relatam como difícil (Moseley et al., 2020).

2.2. Valorização da autenticidade

Muitos autistas rejeitam jogos sociais, máscaras emocionais ou relações baseadas em aparências. Eles buscam, ainda que inconscientemente, pessoas que se comuniquem com clareza e sinceridade, com quem possam compartilhar interesses intensos e profundos. Outros autistas, por também adotarem essas posturas, tornam-se parceiros ideais nesse sentido.

2.3. Ambientes de convivência comuns

Autistas não diagnosticados tendem a frequentar espaços não convencionais: universidades, ambientes artísticos, grupos de nicho na internet, espaços alternativos. Nesses locais, a chance de encontrar outro autista (também sem diagnóstico) é maior. O chamado “acasalamento assortativo” (assortative mating), conceito investigado por Simon Baron-Cohen, sustenta a ideia de que pessoas com perfis cognitivos semelhantes (como alto pensamento sistemático ou introspectivo) tendem a formar casais (Baron-Cohen, 2006; Nayar et al., 2021).

3. Os dados ainda são escassos — mas os relatos são abundantes

Embora não existam estatísticas amplas e definitivas sobre o número de casais autistas-autistas, já há pesquisas qualitativas que mostram uma clara tendência a relações mais bem-sucedidas e compreensivas quando ambas as partes estão no espectro. Um estudo de 2023 publicado no Journal of Autism and Developmental Disorders comparou experiências românticas de autistas e neurotípicos, e apontou que casais autistas demonstraram maior empatia recíproca e compreensão emocional dentro da própria lógica autista de afeto (Wilson et al., 2023).

Da mesma forma, pesquisas como as de Richards et al. (2021) demonstram a correlação estatística entre traços autistas e a escolha de parceiros com perfis semelhantes, apoiando a hipótese de que há um padrão não casual nessas uniões.

Conclusão

Não se trata de afirmar que autistas devam se relacionar apenas com outros autistas. Há muitos casais felizes em relações mistas (autista-neurotípico), e o amor jamais deve ser limitado por classificações diagnósticas. No entanto, reconhecer que há uma tendência maior entre autistas de se relacionarem com outros autistas, mesmo antes de qualquer diagnóstico, é um passo importante para romper preconceitos, repensar paradigmas de comunicação e valorizar a complexidade das relações neurodivergentes.

Talvez, no fim das contas, o que une essas pessoas seja mais do que o diagnóstico: seja a experiência comum de navegar um mundo que insiste em chamá-las de estranhas — quando, na verdade, são apenas singulares.

Referências

Milton, D. (2012). On the ontological status of autism: the ‘double empathy problem’. Disability & Society, 27(6), 883-887. https://doi.org/10.1080/09687599.2012.710008

Baron-Cohen, S. (2006). The Assortative Mating Theory of Autism. In Dunbar & Barrett (Eds.), Evolutionary Cognitive Neuroscience. MIT Press. (PDF) Assortative mating for autistic traits, systemizing, and theory of mind e The Assortative Mating Theory of Autism | Evolutionary Cognitive Neuroscience | Books Gateway | MIT Press

Nayar, K. et al. (2021). Elevated Autistic Traits in Mothers of Children with Autism: Evidence of Assortative Mating. Biological Psychiatry, 90(9), 634–642. https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/31200929/

Richards, G. et al. (2021). Assortative mating for autistic traits, systemizing, and theory of mind. Behavior Genetics Association Conference. https://www.open-access.bcu.ac.uk/id/eprint/11890/

Wilson, R. et al. (2023). Comparing Physical Intimacy and Romantic Relationships of Autistic and Non-autistic Adults: A Qualitative Analysis. Journal of Autism and Developmental Disorders. https://link.springer.com/article/10.1007/s10803-023-06109-0

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Casado com Janaína e pai do Ulisses. Tutor da Zaira (Chow-Chow) e do Paçoca (hamster). Escritor por hiperfoco e autista de nascença. Membro e presbítero da Igreja REMIDI e missionário pelo PRONASCE. Teólogo, Filósofo e Pedagogo em formação. Especialista em Docência do Ensino Superior e em Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva. Meus autores preferidos são: Agostinho, Kierkegaard, João Wesley, Karl Barth, Bonhoeffer, Tillich, C. S. Lewis, Stott e alguns pais da igreja. Meus hobbys são: ler, assistir filmes e séries.

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