No debate sobre neurodiversidade, a sociedade parece ter uma relação desconcertante com os autistas de nível 1 de suporte. Isso acontece porque esses indivíduos vivem em uma zona limítrofe: são percebidos como “estranhos demais para serem normais, normais demais para serem autistas”. Essa percepção é fundamentalmente capacitista, alimentada por preconceitos que tornam invisíveis as dificuldades reais que enfrentamos. A sociedade precisa urgentemente reconhecer que não existe “autista de mais ou de menos”. Há apenas autistas, cada um com suas necessidades e desafios específicos.
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O nível de suporte, que define o quanto um autista precisa de ajuda para suas necessidades diárias, muitas vezes é mal compreendido. Autistas de nível 1 geralmente têm maior autonomia funcional, mas isso não significa que suas dificuldades sejam menos intensas ou menos válidas. O problema é que, por vezes, essas dificuldades não são visíveis a olhos destreinados, e isso abre as portas para hostilizações silenciosas e preconceitos.
A Comunicação: A Primeira Barreira
Uma das primeiras razões pelas quais os autistas de nível 1 são mais hostilizados é nossa forma de comunicação. A prosódia (o ritmo, tom e entonação da fala) frequentemente se desvia do que a maioria considera “normal”. Podemos ter uma fala mais arrastada, entonações mais planas ou, por vezes, soar mecânicos. Em muitos casos, nossa comunicação é interpretada erroneamente como irritação ou desinteresse. Esse “tom fora do comum” incomoda as pessoas neurotípicas, que não têm paciência para lidar com essa diferença. Isso cria um ciclo de hostilidade: somos punidos por não corresponder às expectativas sociais que os outros têm sobre como devemos nos comportar ou falar.
Outro aspecto crucial é a ecolalia leve, a repetição de palavras ou frases que ouvimos. Isso pode ser visto como pedantismo ou uma tentativa de irritar, quando, na realidade, é uma característica comum no espectro autista. O fato de essa forma de comunicação ser desvalorizada e alvo de críticas revela o quanto o capacitismo está entranhado no tecido social.
O Contato Visual e a Desconfiança
A segunda razão de hostilidade está na dificuldade de contato visual. Muitos autistas têm dificuldade em manter o olhar fixo durante conversas. Para os neurotípicos, o contato visual é um pilar essencial de confiança e sinceridade. Quando não olhamos nos olhos, somos rotulados de “desconfiáveis” ou “escondendo algo”. A exigência de contato visual é uma imposição desnecessária e violenta para muitos autistas, que simplesmente se sentem desconfortáveis ou até sobrecarregados com essa prática. Ao não compreender isso, as pessoas nos pressionam a “agir de forma normal”, sem considerar como essas exigências exacerbam nosso desconforto.
Ingenuidade e Incompreensão Social
Muitos autistas de nível 1 têm dificuldade em compreender figuras de linguagem, ironias, ou jogos de palavras com duplo sentido. Quando confrontamos essas situações, o senso comum parece ser que estamos fingindo não entender, ou que nossa falta de compreensão é uma “estratégia”. Essa percepção distorcida leva a novos episódios de hostilidade. No meu caso, por exemplo, tenho grande dificuldade em entender indiretas e brincadeiras masculinas de duplo sentido sobre sexualidade. Esse tipo de humor me incomoda profundamente, e minha resposta negativa irrita frequentemente os outros, criando um ciclo de exclusão.
A dificuldade em equilibrar expressividade e silêncio também contribui para essa hostilização. Muitos autistas transitam entre extremos emocionais: podem ser altamente expressivos ou excessivamente contidos. Essa falta de equilíbrio muitas vezes é vista como um problema a ser corrigido, o que reforça a ideia de que não estamos agindo consoante as expectativas sociais.
O Desgaste do Preconceito
No fim, as pessoas sempre encontram razões para nos hostilizar. Somos forçados a viver em um mundo que exige que sejamos “normais”, mas que também não nos permite existir com nossas peculiaridades. Essa imposição de normatividade faz com que muitos de nós sejamos vistos como frescos ou exagerados, quando, na realidade, estamos apenas tentando sobreviver em um ambiente que não aceita nossas dificuldades.
A sociedade ainda tem um longo caminho a percorrer para compreender que ser autista não é uma escolha, nem algo que se pode “corrigir” para encaixar nas expectativas alheias. Autistas de nível 1 não precisam ser ajustados ou modificados; precisam ser aceitos como são. A hostilização que enfrentamos diariamente precisa ser reconhecida e combatida para podermos viver com a dignidade e o respeito que merecemos.
Afinal, não existe autismo “leve” quando se trata de enfrentar a ignorância e o capacitismo. A luta pela aceitação passa pela compreensão de que cada autista, independente do nível de suporte, enfrenta desafios reais e profundos. E esses desafios só serão verdadeiramente superados quando deixarmos de ser taxados como “estranhos demais para o mundo normal” e começarmos a ser vistos como seres humanos completos, com direitos e valor intrínseco.
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Casado com Janaína e pai do Ulisses. Tutor da Zaira (Chow-Chow) e do Paçoca (hamster). Escritor por hiperfoco e autista de nascença. Membro e presbítero da Igreja REMIDI e missionário pelo PRONASCE. Teólogo, Filósofo e Pedagogo em formação. Especialista em Docência do Ensino Superior e em Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva. Meus autores preferidos são: Agostinho, Kierkegaard, João Wesley, Karl Barth, Bonhoeffer, Tillich, C. S. Lewis, Stott e alguns pais da igreja. Meus hobbys são: ler, assistir filmes e séries.
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