
Meu Olhar Autista Sobre Datas Comemorativas
Há algo que há muito tempo carrego dentro de mim e que, aos poucos, fui aprendendo a aceitar — e agora sinto que é hora de expressar isso com clareza para quem convive comigo. Trata-se da minha relação com datas comemorativas, especialmente aniversários. Talvez algumas pessoas já tenham percebido pelo meu comportamento, por comentários nas redes sociais ou por meu silêncio em certas ocasiões. Outras, no entanto, ainda estranham — e até se entristecem — com o que vou dizer aqui: para mim, a maioria das datas comemorativas não faz sentido algum.
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Antes que alguém pense se tratar de uma crise existencial, ou de uma tristeza disfarçada, preciso dizer: não se trata disso. Não é mágoa, não é depressão. É simplesmente uma forma diferente de perceber o tempo, o significado e o afeto. E sim, está relacionado ao meu autismo.
É claro que cada pessoa autista é única — algumas são extremamente ligadas a datas, recordando aniversários, datas de falecimento, acontecimentos históricos com precisão milimétrica. Outras, como eu, não veem qualquer sentido nelas. E isso não tem nada a ver com frieza ou desamor. Pelo contrário: é uma questão de autenticidade.
Eu gosto de bolo. Gosto de gente. Gosto de reunir amigos e conversar. Mas não consigo entender por que essas coisas precisam acontecer em um dia “marcado”, como se a espontaneidade tivesse prazo de validade. Por que comemorar o dia em que nasci? Para mim, é apenas mais um passo em direção à morte. Não digo isso com amargura, mas com lucidez. Envelhecer é um processo natural — e muitas vezes doloroso. Comemoramos mais um ano de vida como se fosse uma conquista, mas a verdade é que o tempo passa com ou sem nossa autorização, e a maioria de nós não envelhece com leveza. Envelhecemos com dores, esquecimentos, perdas. Então, comemorar o quê?
Alguém pode retrucar: “Mas é mais um ano vivo, isso merece celebração!” E eu questiono: precisa mesmo? Não seria mais significativo aprender a viver todos os dias com presença, com inteireza, do que esperar um dia específico para demonstrar amor ou gratidão? Cada dia que amanhece já é, por si só, uma oportunidade de recomeço — não preciso de um calendário para me lembrar disso.
A verdade é que me cansa dar parabéns. Não por preguiça, mas porque me sinto falso, mecânico. Dizer “feliz aniversário” virou um protocolo social, uma obrigação disfarçada de carinho. Eu prefiro demonstrar afeto com presença, com escuta, com cuidado cotidiano. Se eu amo alguém, amo todos os dias. E, justamente por isso, o “dia especial” perde sua singularidade — porque para mim, todos os dias são especiais.
Se quero dar um presente, dou. Não espero uma data. Se quero fazer uma festa, faço. Porque estou com vontade, não porque o calendário me obriga. Se há algo que eu realmente celebro, é a comunhão. A partilha. O encontro que acontece porque queremos estar juntos, e não porque o relógio da cultura nos empurrou para isso.
Para algumas pessoas, essa forma de ver a vida pode parecer triste. Mas para mim, é liberdade. Liberdade de não precisar seguir um script social. Liberdade de amar sem roteiro. Liberdade de viver o hoje sem esperar pelo “ano que vem”.
Mas há uma contradição aqui — e quero compartilhá-la com honestidade. Apesar de tudo isso, todos os anos fazemos a festinha de aniversário do meu filho. Porque quero que ele tenha a chance de escolher. Quero que ele viva a experiência social que tantas pessoas valorizam. Quero que ele descubra, por si mesmo, o que faz sentido para ele. Talvez, quando crescer, ele perceba que também não vê sentido nisso. E tudo bem. Mas, até lá, quero lhe dar a oportunidade de experimentar.
Porque a sociedade ainda olha com desconfiança quem pensa diferente. E eu sei o quanto isso pode machucar. Por isso, quero que ele cresça com liberdade — inclusive, a liberdade de comemorar ou não. De aceitar ou questionar. De ser como ele é, e não como esperam que ele seja.
E, quem sabe, um dia ele leia este texto e entenda melhor o pai que sempre o amou — não apenas no dia do seu aniversário, mas todos os dias da sua vida.
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