Autismo,  Neurodiversidade

O Pâncreas Invisível do Cérebro

Era uma tarde quente, e Júlia, mãe de um garoto autista, estava sentada no consultório da terapeuta, exausta das cobranças diárias que recebia. “Você precisa fazer ele sair mais”, diziam os parentes. “Ele precisa aprender a se enturmar”, sugeriam os professores. Para Júlia, tudo soava como um eco sem sentido.

A terapeuta, percebendo o cansaço da mãe, propôs uma analogia: “Imagine se as pessoas olhassem para alguém com diabetes e dissessem: ‘Por que você não faz seu pâncreas trabalhar direito? É só querer!’ Absurdo, não é?” Júlia sorriu, mas a reflexão lhe atravessou como uma flecha. Sim, era absurdo exigir algo que o corpo não pode oferecer naturalmente. Mas por que, então, era tão difícil entender que o cérebro, quando neurodivergente, funciona de maneira tão involuntária quanto um pâncreas que não produz insulina?

A resposta está na invisibilidade. Não há exames, manchas na pele ou cicatrizes que revelem um cérebro autista, com TDAH ou qualquer outra neurodivergência. É uma diferença que não se mede com fita métrica nem se fotografa com raio-X. Essa invisibilidade alimenta a incredulidade. “Se não vejo, não existe”, dizem muitos, ainda que silenciosamente. E assim, o peso da cobrança recai sobre os neurodivergentes: “Esforce-se mais.” “Controle-se.” “Basta tentar.”

Mas o esforço, como Júlia bem sabia, já era constante. Não era o esforço de ser “normal” — porque isso seria como pedir ao pâncreas para operar milagres —, mas o esforço de viver em um mundo que muitas vezes não foi feito para acolher diferenças.

A terapeuta prosseguiu: “As terapias não existem para forçar um autista a ser o que ele não é, mas para ajudá-lo a descobrir o seu próprio jeito de ser no mundo. Não se trata de encaixá-lo em padrões impostos, mas de encontrar formas para que ele viva bem, sem crises constantes.” Júlia sentiu um misto de alívio e tristeza. Alívio porque finalmente alguém explicava isso de forma tão clara; tristeza porque sabia que poucas pessoas estavam dispostas a ouvir.

O problema é que vivemos em uma sociedade que idolatra a padronização. Quem não segue o ritmo esperado, quem não se encaixa, é tratado como um desajustado. Mas e se a questão não for sobre se encaixar, e sim sobre ampliar os limites do encaixe? E se a solução for aprender com o diferente, ao invés de moldá-lo?

Quando Júlia saiu do consultório, passou por um parque onde crianças brincavam. Entre elas, estava seu filho, sentado sozinho na areia, fascinado pela forma como os grãos escapavam entre seus dedos. Uma mãe ao lado comentou: “Por que ele não vai brincar com as outras crianças?” Júlia respirou fundo, e respondeu com a serenidade que a analogia do pâncreas lhe havia dado: “Porque o jeito dele de brincar é diferente, mas não menos válido. Ele não precisa ser consertado; precisa ser compreendido.”

A frase deixou a outra mãe desconcertada, mas Júlia sabia que não se tratava de convencer ninguém naquele momento. Seu filho não precisava que o mundo fosse perfeito, mas precisava de um espaço onde pudesse existir como era. E, quem sabe, um dia, a sociedade deixasse de cobrar do cérebro o que nunca exigiria de um pâncreas.

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Casado com Janaína e pai do Ulisses. Tutor da Zaira (Chow-Chow) e do Paçoca (hamster). Escritor por hiperfoco e autista de nascença. Membro e presbítero da Igreja REMIDI e missionário pelo PRONASCE. Teólogo, Filósofo e Pedagogo em formação. Especialista em Docência do Ensino Superior e em Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva. Meus autores preferidos são: Agostinho, Kierkegaard, João Wesley, Karl Barth, Bonhoeffer, Tillich, C. S. Lewis, Stott e alguns pais da igreja. Meus hobbys são: ler, assistir filmes e séries.

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