A imagem mostra um homem sentado em um banco de praça, em perfil, com expressão pensativa. Ele apoia o queixo na mão, olhando para o horizonte, imerso em seus pensamentos. Ao fundo, pessoas caminham, mas estão desfocadas, representando um contraste entre o movimento do mundo e a introspecção do personagem. O cenário é arborizado, transmitindo um clima calmo e reflexivo.
Autismo,  Neurodiversidade

Reflexões Antes de Me Saber Autista

Alguns meses antes de receber meu diagnóstico de autismo, escrevi um texto que publiquei no Facebook. Naquela época, eu sequer sabia o que era ser autista. Eu não tinha ideia de que certas características que sempre carreguei, e que achava apenas traços da minha personalidade, na verdade, eram expressões de um funcionamento neurológico diferente. Escrevo agora, revisitando aquele relato, com um olhar mais consciente, mas sem alterar a essência do que vivi.

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Minha vida inteira carreguei uma capacidade muito intensa de empatia — mas não aquela empatia romântica, superficial, que às vezes é confundida com simpatia ou gentileza social. Trata-se de uma empatia que se traduz em ação concreta, em um senso lógico de justiça, em perceber que quando alguém está em sofrimento, triste ou fragilizado, aquilo é, de certa forma, um ataque à dignidade humana. E, portanto, não há espaço para a omissão. Eu preciso, eu devo me envolver.

Por outro lado, nunca fui alguém “simpático” no sentido clássico da palavra. Meu índice de simpatia — se é que isso pode ser mensurado — sempre foi perto de zero. Não tenho a menor habilidade para as sutilezas sociais que giram em torno de agradar, fazer charme, chamar a atenção, ou gerar aquela sensação confortável nas interações superficiais. Aliás, nem me esforço. Isso, para mim, sempre pareceu desnecessário, quase um desperdício de energia.

Minha mente funciona de forma extremamente objetiva, funcional, orientada para fatos e soluções. Nunca senti necessidade de reconhecimento ou de aprovação alheia. As famosas curtidas sociais, os olhares de validação, as confirmações do “você é incrível” — tudo isso soa, para mim, como ruído de fundo. Não é que eu despreze quem gosta disso, eu simplesmente não entendo a utilidade para mim.

Talvez, por isso, a coisa mais difícil seja eu me sentir magoado. Palavras atravessam, muitas vezes, sem efeito. Contudo — e aqui está um ponto sensível —, frequentemente sou eu quem magoa. E não por maldade, jamais por intenção. É só que, quando digo algo, falo de forma direta, sem rodeios, sem filtros sociais, sem aquela embalagem que as pessoas esperam receber antes de um conteúdo mais denso. A verdade, por mais cuidadosa que eu tente ser, quase sempre sai nua, crua e, para muitos, desconfortável.

O mais curioso é que, justamente pela empatia, acabo convivendo mais com pessoas em sofrimento, com aqueles que estão nas margens emocionais, espirituais ou existenciais. Gente que carrega dores, lutos, angústias, traumas. Gente que não espera que eu seja agradável, mas que, de alguma forma, percebe que, mesmo sem muitos sorrisos, eu estou lá, inteiro, presente, disposto a participar da dor, disposto a ajudar de forma concreta.

Por outro lado, os encontros mais leves, as conversas banais, os círculos sociais baseados em trocas superficiais… esses sempre me foram difíceis, quase torturantes. Sem perceber, ignoro os códigos invisíveis que as pessoas usam para chamar atenção, para serem notadas, amadas, vistas. Eu não uso esses códigos, nem emito esses sinais. Também não sei ler quando alguém os está emitindo. Isso, que é vital para muitos, não faz parte da minha construção.

E assim, por viver dessa maneira, acabo cercado de poucos, mas bons amigos — aqueles que não se incomodam com minhas falhas comunicativas, com minha falta de simpatia, com minha objetividade, com minhas críticas quase sempre ácidas e, às vezes, inconvenientes. São pessoas que aprenderam a ler o que está além das palavras, além da expressão facial, além do tom de voz. Leram minha disposição sincera, meu compromisso real, minha lealdade quase radical.

Hoje, olhando para trás, consigo entender com mais clareza. Aquelas características que eu pensava serem apenas traços da minha personalidade eram, na verdade, expressões do meu cérebro neurodivergente. Meu jeito de ser não era falha de caráter, não era arrogância, não era indiferença. Era apenas uma outra forma de ser. Uma forma legítima, ainda que pouco compreendida.

O diagnóstico de autismo não mudou quem eu sou. Mas mudou minha forma de me compreender, de me perdoar, de me acolher. E, talvez, de oferecer aos outros não só minha empatia prática, mas também a explicação de que, se às vezes pareço frio, distante ou pouco receptivo, isso não tem a ver com falta de amor, mas com a dificuldade — real, objetiva, neurológica — de expressar aquilo que, internamente, transborda.

Se antes eu não sabia o que era autismo, hoje eu sei. E saber não é uma prisão. É, na verdade, uma libertação.

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Casado com Janaína e pai do Ulisses. Tutor da Zaira (Chow-Chow) e do Paçoca (hamster). Escritor por hiperfoco e autista de nascença. Membro e presbítero da Igreja REMIDI e missionário pelo PRONASCE. Teólogo, Filósofo e Pedagogo em formação. Especialista em Docência do Ensino Superior e em Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva. Meus autores preferidos são: Agostinho, Kierkegaard, João Wesley, Karl Barth, Bonhoeffer, Tillich, C. S. Lewis, Stott e alguns pais da igreja. Meus hobbys são: ler, assistir filmes e séries.

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