A Era das Narrativas e o Triunfo da Mentira

Estamos vivendo uma época peculiar, onde a capacidade de construir narrativas impactantes tornou-se uma ferramenta poderosa, capaz de moldar realidades e direcionar o curso da história. Mais do que nunca, aqueles que dominam a arte da narração e que melhor manipulam os símbolos e significados da sociedade contemporânea são os que angariam a lealdade de multidões. O que antes acreditava-se ser o auge da democracia – com as redes sociais promovendo um debate amplo e plural – tem revelado, na verdade, uma falácia: em vez de expandir as vozes livres e críticas, elas amplificam frequentemente o autoritarismo e as visões moralistas e legalistas que têm dominado os trending topics.

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Há uma ironia grotesca nesse fenômeno. Durante os primeiros anos das redes sociais, havia um otimismo ingênuo: acreditava-se que a democratização da informação traria consigo um mundo mais justo, aberto, e colaborativo. A promessa da Internet parecia óbvia – o fluxo ilimitado de ideias desafogaria as vozes marginalizadas e minaria as estruturas autoritárias. Mas o que aconteceu foi o contrário. Ao invés de abrirmos espaço para debates maduros e informados, nos encontramos mergulhados em uma cacofonia de narrativas, onde a verdade é, muitas vezes, secundária à eficácia retórica.

Essa eficácia retórica tornou-se a base do poder político atual. Grupos que almejam o poder pelo poder – aqueles que buscam eliminar qualquer vestígio de pluralidade e minorias – entenderam melhor do que ninguém a nova lógica. Não é necessário ter a verdade ao seu lado, basta ter a história mais atraente, a narrativa mais cativante. Como alguém sabiamente afirmou: “Se você quer alcançar o povo, diga-lhes que pode derrotar aquilo que eles temem, mesmo que esse medo não exista”. É um truque retórico antigo, mas renovado pelas ferramentas digitais. Criam-se inimigos invisíveis, desnecessários, alimentam-se temores irracionais, e, com isso, os discursos de “salvação” encontram terreno fértil nas mentes e corações da massa.

No entanto, essa conquista não é fruto apenas da habilidade manipulativa desses narradores, mas também de um esvaziamento crítico generalizado. A verdade, que sempre foi simples em essência, é complexa em explicação. Ela demanda esforço para ser compreendida e assimilada. A mentira, por outro lado, é sedutora porque é simplista. Ela não exige reflexão, ela agrada diretamente às emoções mais primitivas: o medo, o ódio, o orgulho. Sofistas modernos, de teorias pseudocientíficas como o terraplanismo a conspirações sobre vacinas, conseguem adeptos não porque suas ideias são logicamente consistentes, mas porque falam à esfera emocional dos indivíduos.

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A verdade, ao contrário, é muitas vezes fria e desapaixonada. Ela não acalenta o coração com promessas de redenção instantânea ou proteção contra ameaças imaginárias. A verdade exige enfrentamento. Ela nos obriga a confrontar o desconfortável, a encarar que, muitas vezes, o sofrimento faz parte da condição humana, que o progresso é lento, que as respostas não são tão simples quanto gostaríamos. E é precisamente essa complexidade que torna a verdade tão difícil de ser comunicada no cenário das redes sociais, onde a gratificação imediata e a emoção exacerbada são as moedas de troca.

As narrativas falaciosas que dominam a esfera pública apelam à simplicidade enganosa. Politicamente, a quantidade de discursos simplistas é estarrecedora. É comum encontrarmos políticos que se apresentam como salvadores da pátria, como heróis que prometem eliminar todos os males com uma varinha mágica. Esses discursos têm grande apelo porque oferecem soluções fáceis para problemas complexos. “Confie em mim, e resolverei o que te atormenta” – essa é a mensagem implícita. E o povo, já saturado de crises, muitas vezes se agarra à promessa, mesmo que a promessa seja fundamentada em nada mais que uma construção ilusória.

O grande paradoxo é que esses líderes e suas narrativas têm um alcance emocional muito mais profundo que os discursos verdadeiros. Não é que as massas desejem, de fato, o mal; elas estão em busca de alívio, de explicações que façam sentido em suas vidas fragmentadas. No entanto, essas mesmas explicações são simplificações grosseiras de uma realidade que é infinitamente mais intrincada do que uma frase de efeito no Twitter pode capturar.

A Era das Narrativas que vivemos é, portanto, uma era de mentiras disfarçadas de histórias atraentes. É uma era em que a forma muitas vezes supera o conteúdo, onde o espetáculo prevalece sobre a substância. E, talvez, este seja o maior desafio da nossa geração: como reverter esse estado de coisas? Como podemos fazer com que a verdade – com toda a sua simplicidade e complexidade – seja ouvida acima dos gritos histéricos das falsas narrativas?

Parte da resposta talvez resida na revalorização do pensamento crítico e da educação que valorize a complexidade. Não basta apontar meramente os erros e desmontar as falácias; é preciso ensinar as pessoas a pensarem por si mesmas, a discernirem a verdade da falsidade, a entenderem que as soluções fáceis são raramente as corretas. Para isso, é necessária uma revolução no modo como nos relacionamos com a informação. Precisamos de um retorno ao que há de mais fundamental no exercício da cidadania: o direito e o dever de pensar criticamente.

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O triunfo da mentira atraente sobre a verdade incômoda é um sintoma de uma sociedade que se acostumou a respostas fáceis, mas que, no fundo, anseia por algo mais profundo. Nossa tarefa, como críticos e pensadores, é reabrir as portas da complexidade, reafirmar a importância da busca pela verdade, e resistir à tentação de ceder à narrativa mais bonita, mas vazia de sentido. Só assim poderemos, quem sabe, quebrar o ciclo das mentiras que governam nossa era.

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Casado com Janaína e pai do Ulisses. Tutor da Zaira (Chow-Chow) e do Paçoca (hamster). Escritor por hiperfoco e autista de nascença. Membro e presbítero da Igreja REMIDI e missionário pelo PRONASCE. Teólogo, Filósofo e Pedagogo em formação. Especialista em Docência do Ensino Superior e em Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva. Meus autores preferidos são: Agostinho, Kierkegaard, João Wesley, Karl Barth, Bonhoeffer, Tillich, C. S. Lewis, Stott e alguns pais da igreja. Meus hobbys são: ler, assistir filmes e séries.

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