A Identidade Distorcida da Fé Tupiniquim

A fé cristã no Brasil foi moldada por distorções culturais, interesses políticos e uma espiritualidade superficial. Este texto expõe essas raízes e aponta caminhos de redenção.

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A igreja evangélica brasileira vive uma curiosa crise de identidade histórica e teológica. Não sabe se é Israel ou se é Roma. E, no meio desse limbo, tenta ser ambos — um híbrido improvável entre o judaísmo veterotestamentário e a Idade Média eclesiástica. É um caso fascinante de anacronismo espiritual, uma viagem no tempo que ignora dois mil anos de cristianismo para estacionar entre Moisés e Tomás de Aquino, sem jamais chegar a Cristo.

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O flerte com o judaísmo antigo já se tornou um relacionamento sério. É o amor platônico da igreja brasileira. Uma paixão que não se consuma, mas domina a imaginação. É o “povo escolhido” redivivo, com direito a bandeiras de Israel no púlpito, kipás improvisados, chofar tocado fora de tom e réplicas da arca da aliança feitas em plástico dourado compradas em sites chineses. Temos o tabernáculo de cetim, o candelabro de aço inox, o óleo de Israel em frascos ungidos com código de barras, e pastores que se autodenominam “rabinos cristãos”, numa mistura de sincretismo e delírio teológico.

Até o momento, ainda não sacrificaram animais — mas falta pouco. No discurso, o altar já é o mesmo do templo de Salomão (com direito a ofertas “de sacrifício”), e Deus, ao que parece, voltou a ser o gerente do Tesouro Nacional de Israel, pronto a multiplicar o gado, o ouro e a descendência de quem pagar o “propósito”. Jesus, nesse contexto, é reduzido a um “super-rabino”, o mais sábio dos judeus, e não o Messias que rasgou o véu e cumpriu a Lei. Volta-se, assim, ao mesmo erro dos judaizantes que o apóstolo Paulo tanto combateu — aquele que substitui o Evangelho da graça pelo fetiche do rito, a fé viva pela liturgia de consumo.

Mas a igreja brasileira é monogâmica demais para amar um só anacronismo. Enquanto jura fidelidade a Israel, também se deita nos braços da Idade Média. O amor proibido por Roma virou um caso escandaloso. Protestam contra o catolicismo, chamam-no de “porta do inferno”, mas não há quem ame mais os métodos medievais do que os evangélicos modernos. Mulheres pregando? Heresia! Pastoras? Abominação! A submissão feminina é dogma. O púlpito, um mosteiro fechado. Não há base bíblica sólida para isso, mas há uma longa tradição de patriarcado travestido de santidade, herdado diretamente dos séculos em que a fé se confundia com feudalismo e a Bíblia era lida apenas pelos “ungidos”.

E quem ousa questionar? Temos, afinal, nossa própria Inquisição 2.0. Os tribunais da fé agora têm microfone, transmissão ao vivo e hashtags. Se não votou no político ungido pelo “pastor-apóstolo-bispo-presidente”, não é cristão — é comunista, nazista, inimigo do Reino, servo de Satanás. A teocracia de púlpito se impôs sobre o Evangelho da cruz. O pastor virou dono da consciência dos fiéis, e o “não toqueis nos meus ungidos” substituiu “examinai tudo e retende o que é bom” (1Ts 5.21).

O pluralismo denominacional, que deveria ser riqueza, tornou-se idolatria institucional. Cada denominação é um Vaticano particular. Cada pastor é um Lutero com sede de trono. Uns acham que têm o monopólio da santidade; outros, o monopólio do Espírito. São milhares de igrejas, cada uma mais “ungida” que a outra, todas com a mesma pretensão: serem a noiva preferida de Deus. Se Calvino e Lutero voltassem, teriam enjoo teológico diante dessa Babel de vaidades travestida de Reforma.

Há, claro, os que avançaram ainda mais rumo ao obscurantismo. Um grupo defende que anticoncepcionais são pecado — afinal, impedir o nascimento de filhos seria “impedir o agir de Deus” (e o crescimento da igreja, por tabela). Outros resgataram a crença de que mulheres não devem votar, pois isso “subverte a ordem divina”. Há os que, de modo francamente capacitista e cruel, negam a existência de transtornos mentais, classificando-os como “demônios” — a mesma lógica que na Idade Média queimava pessoas com epilepsia ou esquizofrenia em praças públicas.

E como esquecer os “exorcismos” públicos, as “maldições hereditárias” vendidas em envelopes de oferta, ou as “campanhas de libertação” que mais lembram indulgências modernas? A diferença é que, no lugar de moedas, usa-se Pix.

No fundo, a igreja evangélica brasileira já não se parece com a igreja cristã dos primeiros séculos — e nem quer. Aquela comunidade marcada pela partilha, pela comunhão, pela solidariedade e pela resistência ao poder político, foi substituída por templos corporativos, palcos de shows, pastores-celebridades e políticos travestidos de profetas. A cruz deu lugar ao marketing, o arrependimento à performance, o discipulado à monetização.

Estamos, enfim, em uma derrocada rumo à futilidade gospel — uma era em que o sagrado é produto, a fé é espetáculo e a salvação, uma assinatura premium. A igreja brasileira quer ser tudo, menos cristã: quer ser Israel sem deserto, Roma sem penitência e Jerusalém sem cruz.

Mas o Evangelho — esse escândalo de simplicidade — ainda sussurra no meio do barulho: “O meu Reino não é deste mundo.” (João 18:36).

Pena que poucos ainda consigam ouvir. Ou, ainda bem que há alguns que ouvem.

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Paulo Freitas

Paulo Freitas

Paulo Freitas é teólogo, filósofo, professor e presbítero. Autista, escreve sobre fé, fragilidade, dor, neurodiversidade e tudo o que nos torna profundamente humanos.

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