
Deus Odeia? A Contradição dos que Falam por Deus
Assisti a um vídeo profundamente desconcertante. Nele, uma jovem pergunta à mãe o que ela pensa sobre relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo. A resposta vem cortante: “Eu respeito, mas Deus odeia.” A conversa progride até a revelação da filha: ela é lésbica. A mãe, em aparente dilema, repete: “Filha, eu te amo, mas Deus odeia isso.”
Essa frase — aparentemente equilibrada — revela uma fratura teológica e humana. Há uma tentativa de manter o afeto, mas sem abrir mão do julgamento. Como se o amor fosse possível sem aceitação. Como se o afeto pudesse coexistir com o ódio divino terceirizado.
Comecemos do princípio: Deus é amor (1Jo 4.8). Não se trata de uma metáfora, nem de um atributo ocasional. O amor é essência divina. É por amor que Ele cria, sustenta e redime. É por amor que concede liberdade ao homem. É por amor que suporta a dor de ser rejeitado. É por amor que se encarna no Filho. E é por amor que nos encontra, mesmo quando falhamos.
Portanto, quando alguém diz “Deus odeia isso”, o que exatamente está dizendo? Que Deus nega sua própria essência em nome de uma ética? Que Deus abdica de sua natureza amorosa para justificar nosso desconforto com o outro?
Muitos dizem que amam o pecador e odeiam o pecado. Mas essa fórmula, além de cansada, é muitas vezes desonesta. Pois o que se vê não é o amor ao pecador, mas o uso do “ódio divino” como justificativa para o distanciamento, para a frieza, para o preconceito. É uma forma de manter intacto o afeto da convivência familiar, ao mesmo tempo em que se preserva o moralismo — ainda que às custas da verdade do Evangelho.
Não será isso, como dizia Nietzsche, uma forma de ressentimento? Um desejo reprimido de condenar, disfarçado de virtude? Ao dizer “Deus odeia”, alguns não estão dizendo “eu odeio, mas preciso de uma autoridade maior para validar meu desconforto”?
É possível amar alguém que acreditamos que Deus odeia? Essa pergunta revela o absurdo da lógica usada. Pois, se Deus odeia o que alguém é (e não apenas o que alguém faz), então como pode haver amor possível — humano ou divino — que seja verdadeiro?
Na raiz dessa contradição está a má teologia. Uma má leitura bíblica. E talvez um medo profundo: o medo de que o amor seja mais poderoso do que o controle.
Se adotarmos uma visão calvinista da eleição, então os eleitos são eleitos soberanamente — não por seus méritos. E os não eleitos, ainda que se esforcem, não podem mudar sua condição. Logo, que sentido há em condenar quem não tem poder de mudar? Não seria mais coerente amar profundamente esses — que, segundo tal lógica, são os mais carentes da misericórdia?
Se adotarmos uma visão arminiana, então Deus concedeu livre-arbítrio. E se alguém escolheu um caminho, essa escolha está sob o risco e o mistério da liberdade que o próprio Deus permitiu. Logo, quem sou eu para desautorizar, com ódio, a liberdade que Deus concedeu com amor?
Em ambas as visões, calvinista ou arminiana, a conclusão converge: o papel do cristão é amar.
O Cristo que morreu na cruz não fez distinções de afeto. Seu sangue foi derramado “por muitos”, e sua vida foi entregue “enquanto ainda éramos pecadores” (Rm 5.8). A cruz é o fim de qualquer justificativa para o ódio religioso.
O Antigo Testamento está cheio de cenas onde Deus repreende, disciplina e julga. Mas também está cheio de versos como: “Com amor eterno eu te amei” (Jr 31.3). Israel traiu, duvidou, transgrediu — e mesmo assim, Deus amou. O amor divino não é condicionado à pureza do objeto amado. Ele ama porque é amor.
Por isso, ao ouvirmos frases como “Deus odeia isso”, devemos perguntar: que Deus é esse? O Deus que encarna para abraçar o leproso, ou o ídolo que criamos para justificar nossa aversão?
Não nego que a Bíblia traz desafios éticos. Há tensões reais entre fé e prática, entre texto e contexto. Mas negar o outro em nome de Deus não é fidelidade bíblica — é idolatria teológica. É transformar Deus em espelho dos nossos medos.
Amar o próximo, nesse contexto, não é tolerar silenciosamente. É escolher viver com ele, mesmo que sua vida nos desafie. É saber que nosso chamado não é controlar, mas testemunhar. Não é excluir, mas incluir. Não é condenar, mas apontar para a cruz — onde todos somos nivelados pela graça.
Que possamos parar de usar Deus como escudo para os nossos afetos mal resolvidos. E que aprendamos, enfim, a amar como Ele ama: com liberdade, com entrega e com verdade.
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