A imagem retrata uma cena medieval em um ambiente gótico, com um homem vestindo um manto roxo e um chapéu pontudo sentado em um trono ornamentado. Ele parece ser uma figura de autoridade religiosa ou inquisitorial, gesticulando com uma das mãos enquanto mantém uma expressão severa. Ao redor dele, um grupo de pessoas com trajes típicos da época o observa atentamente, algumas parecendo submissas, enquanto outras demonstram indignação ou questionamento. À direita da cena, há um enorme livro de aparência sagrada, fechado com correntes e um grande cadeado, com uma cruz pregada na capa, simbolizando restrição ou controle sobre o conhecimento religioso. Em frente ao trono, uma pilha de livros e pergaminhos reforça a ideia de julgamento sobre o conhecimento e a fé. A ambientação e os elementos remetem a uma representação simbólica da censura e do controle da Igreja sobre o pensamento na Idade Média, possivelmente uma alusão à Inquisição ou ao conflito entre doutrina e questionamento intelectual.
Crítica

Os Donos da Fé: Monopolização da Cosmovisão Cristã

Introdução: O Dogma como Instrumento de Poder

Desde os primórdios da Igreja, a disputa pela interpretação “correta” das Escrituras e a busca pela tem sido uma arena de conflito, onde o poder teológico se confunde com o poder político. Hoje, não é diferente. Um grupo específico, autoproclamado guardião da “verdadeira cosmovisão cristã”, ergue-se como juiz inquestionável da ortodoxia, determinando quem está dentro ou fora dos muros da fé aceitável. Essa elite teológica, muitas vezes vinculada à tradição reformada, opera sob a ilusão de que sua interpretação é pura, objetiva e livre de influências culturais, enquanto todas as demais são contaminadas por “agendas identitárias” ou “viéses modernos”.

Mas quem, de fato, detém o monopólio da verdade bíblica? E por que essa mesma teologia que se diz universal é, na realidade, profundamente local—nascida em contextos europeus, filtrada pelo racionalismo alemão e depois exportada como produto teológico acabado para o resto do mundo?

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I. A Hermenêutica do Domínio: Quando a Interpretação Bíblica se Torna Opressão

A imagem apresenta uma ilustração estilizada com fundo dourado, onde um personagem central, representado inteiramente em preto, veste uma vestimenta religiosa e segura um livro vermelho com uma cruz na capa. Ele usa uma coroa dourada, simbolizando poder ou autoridade, e está posicionado diante de dois grandes martelos de juiz cruzados ao fundo.  Em torno dessa figura, há diversas pessoas retratadas em cores distintas (preto, branco, vermelho), simbolizando diferentes etnias e culturas. Algumas dessas figuras possuem pinturas tribais no rosto, enquanto outras remetem a diferentes grupos sociais. A corrente dourada que passa em frente a elas parece indicar opressão ou controle. À direita, há um personagem vestindo um capuz pontiagudo vermelho, que pode remeter a símbolos de intolerância e opressão.  A composição da imagem sugere uma crítica ao uso do poder religioso e judicial para subjugar ou oprimir diferentes povos e culturas, levantando reflexões sobre colonialismo, imposição de crenças e dominação social.

A Reforma Protestante trouxe consigo a valorização do Sola Scriptura, mas também inaugurou uma nova era de disputas interpretativas. O problema não está na busca por uma leitura fiel da Bíblia, mas na arrogância de crer que uma única tradição—geralmente a reformada—detém a chave exclusiva para decifrá-la. Essa postura ignora que toda hermenêutica é, inevitavelmente, situada.

Os teólogos que se autodenominam “os donos da cosmovisão cristã” agem como se suas categorias de pensamento fossem neutras, como se Calvino, Lutero e os puritanos tivessem escapado milagrosamente de suas próprias limitações históricas e culturais. No entanto, a teologia reformada clássica é fruto de um contexto específico: a Europa do século XVI, marcada por conflitos políticos, estruturas feudais em decadência e uma visão de mundo profundamente hierárquica. Quando essa teologia é transplantada para outros solos sem crítica, ela se torna não um instrumento de libertação, mas de dominação espiritual.

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II. A Hipocrisia do “Viés Identitário”: Quando a Branquitude se Esconde Atrás da Neutralidade

Um dos argumentos mais frequentes desses guardiões da ortodoxia é que teologias desenvolvidas por mulheres, negros, latino-americanos ou africanos são “identitárias”—como se a teologia europeia, escrita por homens brancos, não fosse igualmente marcada por sua identidade. Essa crítica é uma falácia que revela um profundo desconhecimento (ou má-fé) sobre como o conhecimento é produzido.

A teologia reformada tradicional não é menos “identitária” do que a teologia feminista ou a teologia negra. Ela apenas naturalizou seu viés a tal ponto que ele se tornou invisível para seus defensores. Quando uma mulher escreve sobre a opressão de gênero nas Escrituras, ela é acusada de “distorcer o texto com sua agenda”. Mas quando João Calvino escreve sobre a autoridade civil em As Institutas, ele não está igualmente influenciado por seu contexto de relações de poder no século XVI?

A diferença é que um grupo tem o privilégio de ser considerado “universal”, enquanto o outro é marginalizado como “particular”. Essa dinâmica revela uma estrutura de poder onde apenas algumas vozes são autorizadas a falar em nome de Deus.

III. A Exportação da Fé: Como a Teologia Europeia se Tornou a Medida de Todas as Coisas

Não é coincidência que grande parte da teologia sistemática contemporânea tenha raízes na Alemanha, na Holanda ou nos EUA. A teologia reformada, em particular, foi moldada pela filosofia racionalista e pelo individualismo burguês, elementos que não são intrínsecos ao cristianismo, mas produtos de uma cultura específica.

Quando essa teologia é imposta como padrão para igrejas na África, na Ásia ou na América Latina, ela frequentemente sufoca expressões locais de fé que poderiam enriquecer a compreensão global do Evangelho. O resultado é uma homogenização espiritual, onde culturas não-europeias são forçadas a pensar a fé dentro de moldes que não lhes pertencem.

IV. A Inquisição Moderna: Hereges, Deformados e os Novos Index Librorum Prohibitorum

Assim como a Igreja medieval criou mecanismos para silenciar dissidências, os novos inquisidores teológicos usam de táticas semelhantes:

  • O ostracismo eclesiástico: Quem ousa questionar os dogmas estabelecidos é excluído de espaços acadêmicos e ministeriais.
  • A desqualificação ad hominem: Teólogos que abordam questões de raça, gênero ou colonialismo são acusados de “abandonarem o Evangelho”.
  • A fetichização da ortodoxia: A fidelidade à tradição reformada é colocada acima da própria Escritura, criando um novo tradicionalismo tão rígido quanto o que a Reforma supostamente combateu.

Essa mentalidade não protege a fé—ela a aprisiona.

Conclusão: Por uma Teologia Humilde e Plural

O Evangelho é maior do que qualquer sistema teológico. A Bíblia não pertence a Lutero, a Calvino, nem a qualquer grupo que se arvore dono da verdade. Ela é um texto vivo, que fala através de culturas, gêneros e épocas.

Uma teologia verdadeiramente cristã deve ser humilde o suficiente para reconhecer seus próprios limites e corajosa o suficiente para ouvir vozes que foram silenciadas. Caso contrário, estaremos repetindo os erros do farisaísmo—confundindo a letra que mata com o Espírito que vivifica.

Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.

Para estudar mais

Não Existe Uma Só Cosmovisão Cristã. Existem Várias! Breve Resumo e Crítica da “Cosmovisão Cristã” mais popular. – SURIAN

A visão da cosmovisão cristã sobre o conceito de pessoa e o princípio da dignidade humana | Revista Eletrônica Espaço Teológico.

As cosmovisões bíblicas. | Ricardo Gondim

Nossa Identidade Reformada – Hermisten Maia

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Casado com Janaína e pai do Ulisses. Tutor da Zaira (Chow-Chow) e do Paçoca (hamster). Escritor por hiperfoco e autista de nascença. Membro e presbítero da Igreja REMIDI e missionário pelo PRONASCE. Teólogo, Filósofo e Pedagogo em formação. Especialista em Docência do Ensino Superior e em Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva. Meus autores preferidos são: Agostinho, Kierkegaard, João Wesley, Karl Barth, Bonhoeffer, Tillich, C. S. Lewis, Stott e alguns pais da igreja. Meus hobbys são: ler, assistir filmes e séries.

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