
Os Donos da Fé: Monopolização da Cosmovisão Cristã
Introdução: O Dogma como Instrumento de Poder
Desde os primórdios da Igreja, a disputa pela interpretação “correta” das Escrituras e a busca pela tem sido uma arena de conflito, onde o poder teológico se confunde com o poder político. Hoje, não é diferente. Um grupo específico, autoproclamado guardião da “verdadeira cosmovisão cristã”, ergue-se como juiz inquestionável da ortodoxia, determinando quem está dentro ou fora dos muros da fé aceitável. Essa elite teológica, muitas vezes vinculada à tradição reformada, opera sob a ilusão de que sua interpretação é pura, objetiva e livre de influências culturais, enquanto todas as demais são contaminadas por “agendas identitárias” ou “viéses modernos”.
Mas quem, de fato, detém o monopólio da verdade bíblica? E por que essa mesma teologia que se diz universal é, na realidade, profundamente local—nascida em contextos europeus, filtrada pelo racionalismo alemão e depois exportada como produto teológico acabado para o resto do mundo?
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I. A Hermenêutica do Domínio: Quando a Interpretação Bíblica se Torna Opressão

A Reforma Protestante trouxe consigo a valorização do Sola Scriptura, mas também inaugurou uma nova era de disputas interpretativas. O problema não está na busca por uma leitura fiel da Bíblia, mas na arrogância de crer que uma única tradição—geralmente a reformada—detém a chave exclusiva para decifrá-la. Essa postura ignora que toda hermenêutica é, inevitavelmente, situada.
Os teólogos que se autodenominam “os donos da cosmovisão cristã” agem como se suas categorias de pensamento fossem neutras, como se Calvino, Lutero e os puritanos tivessem escapado milagrosamente de suas próprias limitações históricas e culturais. No entanto, a teologia reformada clássica é fruto de um contexto específico: a Europa do século XVI, marcada por conflitos políticos, estruturas feudais em decadência e uma visão de mundo profundamente hierárquica. Quando essa teologia é transplantada para outros solos sem crítica, ela se torna não um instrumento de libertação, mas de dominação espiritual.
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II. A Hipocrisia do “Viés Identitário”: Quando a Branquitude se Esconde Atrás da Neutralidade
Um dos argumentos mais frequentes desses guardiões da ortodoxia é que teologias desenvolvidas por mulheres, negros, latino-americanos ou africanos são “identitárias”—como se a teologia europeia, escrita por homens brancos, não fosse igualmente marcada por sua identidade. Essa crítica é uma falácia que revela um profundo desconhecimento (ou má-fé) sobre como o conhecimento é produzido.
A teologia reformada tradicional não é menos “identitária” do que a teologia feminista ou a teologia negra. Ela apenas naturalizou seu viés a tal ponto que ele se tornou invisível para seus defensores. Quando uma mulher escreve sobre a opressão de gênero nas Escrituras, ela é acusada de “distorcer o texto com sua agenda”. Mas quando João Calvino escreve sobre a autoridade civil em As Institutas, ele não está igualmente influenciado por seu contexto de relações de poder no século XVI?
A diferença é que um grupo tem o privilégio de ser considerado “universal”, enquanto o outro é marginalizado como “particular”. Essa dinâmica revela uma estrutura de poder onde apenas algumas vozes são autorizadas a falar em nome de Deus.
III. A Exportação da Fé: Como a Teologia Europeia se Tornou a Medida de Todas as Coisas
Não é coincidência que grande parte da teologia sistemática contemporânea tenha raízes na Alemanha, na Holanda ou nos EUA. A teologia reformada, em particular, foi moldada pela filosofia racionalista e pelo individualismo burguês, elementos que não são intrínsecos ao cristianismo, mas produtos de uma cultura específica.
Quando essa teologia é imposta como padrão para igrejas na África, na Ásia ou na América Latina, ela frequentemente sufoca expressões locais de fé que poderiam enriquecer a compreensão global do Evangelho. O resultado é uma homogenização espiritual, onde culturas não-europeias são forçadas a pensar a fé dentro de moldes que não lhes pertencem.
IV. A Inquisição Moderna: Hereges, Deformados e os Novos Index Librorum Prohibitorum
Assim como a Igreja medieval criou mecanismos para silenciar dissidências, os novos inquisidores teológicos usam de táticas semelhantes:
- O ostracismo eclesiástico: Quem ousa questionar os dogmas estabelecidos é excluído de espaços acadêmicos e ministeriais.
- A desqualificação ad hominem: Teólogos que abordam questões de raça, gênero ou colonialismo são acusados de “abandonarem o Evangelho”.
- A fetichização da ortodoxia: A fidelidade à tradição reformada é colocada acima da própria Escritura, criando um novo tradicionalismo tão rígido quanto o que a Reforma supostamente combateu.
Essa mentalidade não protege a fé—ela a aprisiona.
Conclusão: Por uma Teologia Humilde e Plural
O Evangelho é maior do que qualquer sistema teológico. A Bíblia não pertence a Lutero, a Calvino, nem a qualquer grupo que se arvore dono da verdade. Ela é um texto vivo, que fala através de culturas, gêneros e épocas.
Uma teologia verdadeiramente cristã deve ser humilde o suficiente para reconhecer seus próprios limites e corajosa o suficiente para ouvir vozes que foram silenciadas. Caso contrário, estaremos repetindo os erros do farisaísmo—confundindo a letra que mata com o Espírito que vivifica.
Quem tem ouvidos para ouvir, ouça.
Para estudar mais
As cosmovisões bíblicas. | Ricardo Gondim
Nossa Identidade Reformada – Hermisten Maia
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