Sobre Igrejados e Desigrejados

É curioso observar como, ao longo dos séculos, o cristianismo institucionalizado foi se transformando em uma série de rituais, normas e tradições que, embora pudessem ter seu valor em determinados contextos, acabaram muitas vezes obscurecendo o cerne do que deveria ser o Evangelho de Cristo. O movimento dos desigrejados, que frequentemente é criticado pela sua escolha de abandonar as estruturas institucionais da igreja, nos leva a refletir sobre questões fundamentais do relacionamento do ser humano com Deus, e a crítica a eles não deveria existir sem uma crítica paralela ao que chamo de “igrejados” — aqueles que permanecem na igreja institucional, mas que, em muitos casos, também perdem o foco do que realmente significa ser discípulo de Cristo.

A Síndrome de Exclusivismo dos Igrejados: Uma Relíquia Farisaica

Assim como os judeus dos tempos de Jesus se consideravam exclusivos portadores do favor divino, muitos dos que permanecem em igrejas institucionais caem na mesma armadilha de exclusividade espiritual. Eles acreditam que, por estarem ligados a uma estrutura eclesiástica, possuem um status espiritual superior. A história bíblica nos alerta sobre essa perigosa sensação de superioridade. Os fariseus, os religiosos do tempo de Jesus, eram zelosos na guarda da Lei e rigorosos em sua prática religiosa, mas perderam a conexão essencial com Deus, a ponto de não reconhecerem o próprio Messias quando Ele se fez presente entre eles (João 1:11).

Jesus confrontou constantemente os fariseus por sua hipocrisia, sua obsessão por normas e sua falta de misericórdia. Ele disse: “Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim” (Mateus 15:8). A crítica de Jesus vai ao cerne do que significa ser “igrejado” atualmente. O problema não está em frequentar uma igreja ou seguir tradições, mas em depositar sua confiança na estrutura visível, em vez de cultivar um relacionamento sincero e íntimo com Deus.

O Irmão do Filho Pródigo: Presença Sem Relacionamento

Uma ilustração profunda sobre o que significa ser “igrejado” é a parábola do filho pródigo (Lucas 15:11-32). Enquanto muitos se concentram no filho que abandonou a casa do pai, a figura do irmão mais velho recebe raramente a devida atenção. Ele permaneceu em casa, cumpriu suas obrigações, trabalhou duro e jamais se afastou. Contudo, ao observar sua reação ao retorno do irmão pródigo, percebemos que ele não tinha um relacionamento verdadeiro com o pai. Sua presença constante na casa não significava que ele compreendia ou compartilhava do coração do pai. Seu comportamento revelou ressentimento, justiça própria e uma falta de amor e graça.

O “igrejado”, muitas vezes, se assemelha ao irmão mais velho. Ele está sempre presente, cumprindo todas as obrigações religiosas, mas sem experimentar a profundidade da comunhão com Deus, sem perceber que o centro do cristianismo não é a mera presença em um templo ou a realização de rituais, mas sim o relacionamento íntimo com o Pai e o amor pelo próximo.

Agenda e Propagandismo Denominacional: O Reino de Deus ou o Reino dos Homens?

Outro aspecto a ser criticado nos igrejados é a agenda de crescimento institucional. Jesus deu a ordem: “Ide e fazei discípulos de todas as nações” (Mateus 28:19), um chamado para além das fronteiras denominacionais. Contudo, o que vemos em muitas igrejas é um esforço constante para encher templos, aumentar números e propagar o nome da denominação, em vez de focar na expansão do Reino de Deus e na edificação dos discípulos.

A Igreja Primitiva tinha em sua essência a missão de ser testemunha do amor de Deus e da reconciliação por meio de Cristo. O objetivo não era expandir um império religioso, mas ser uma comunidade viva, que partilhava o pão, que cuidava dos necessitados e era movida por uma fé que não cabia em estruturas humanas. O Espírito Santo os guiava e capacita a Igreja até hoje, mas muitas vezes nossas agendas institucionais limitam Sua ação, pois preferimos manter um status quo organizacional do que sermos verdadeiramente guiados pelo Espírito.

Os “igrejados” muitas vezes se prendem a uma cultura de “propagandismo denominacional”, participando de uma guerra fria invisível entre igrejas, buscando provar que seu grupo é superior aos demais. Esquecem-se de que o próprio Jesus orou para que Seus seguidores fossem um, assim como Ele e o Pai são um (João 17:21). Qualquer divisão que se fundamenta na tentativa de provar superioridade ou exclusividade revela uma falha no entendimento do que significa ser parte do Corpo de Cristo.

As Tribos Dentro da Igreja: Grupos de Exclusão e Fragmentação

Dentro das igrejas, ainda vemos a formação de grupinhos e panelinhas que excluem e categorizam as pessoas, dependendo de seus estilos, gostos e classes sociais. Isso é uma prova de que, para muitos igrejados, o foco não é o Reino de Deus, mas sim suas preferências pessoais e os pequenos feudos que se formam em torno de conveniências e afinidades humanas.

Paulo, escrevendo aos coríntios, os repreende por suas divisões internas e por sua falta de entendimento do que significa ser uma comunidade em Cristo (1 Coríntios 1:10-13). Ele enfatiza que não há espaço para divisões entre os seguidores de Jesus, pois todos somos um em Cristo. Quando os igrejados se permitem dividir em tribos e panelinhas, estão demonstrando que seu foco está longe de ser o Reino e mais próximo da busca por uma aceitação social que deveria ser secundária dentro da comunhão cristã.

O Medo da Ruptura: Por Que os Igrejados Não Se Tornam Desigrejados?

Por fim, é interessante observar que os igrejados, em sua maioria, não se tornariam desigrejados. A estrutura lhes oferece uma segurança que não é necessariamente espiritual, mas organizacional. Há uma dependência da igreja como instituição para garantir um sentido de pertencimento e espiritualidade. Se, por algum motivo, fossem desafiados a romper com essas estruturas, muitos acabariam abandonando a fé, pois sua confiança estava mais na estrutura visível do que no invisível Deus que os chama à liberdade.

Os desigrejados, por outro lado, representam aqueles que não encontraram na instituição a expressão do amor e da comunhão que Jesus desejou para Seu povo. Abandonaram a estrutura, mas muitos não abandonaram a fé, pois encontraram em Cristo, e não em paredes, o centro da sua vida espiritual.

É necessário lembrar que Jesus, ao conversar com a mulher samaritana, declarou que chegava o momento em que os verdadeiros adoradores adorariam o Pai em espírito e em verdade (João 4:23-24). Isso nos mostra que a adoração a Deus não está vinculada a um lugar ou a uma estrutura, mas à essência do nosso coração.

Conclusão: Um Chamado ao Relacionamento Real e à Comunhão Genuína

O problema não está em ser “igrejado” ou “desigrejado”, mas em onde está o nosso coração e a quem estamos buscando agradar. A crítica ao movimento dos desigrejados precisa ser acompanhada por uma crítica ao igrejismo, que frequentemente mantém uma aparência de piedade, mas nega o seu poder (2 Timóteo 3:5).

O chamado de Jesus não é para sermos frequentadores de uma instituição, mas para sermos discípulos que vivem em profunda comunhão com o Pai e uns com os outros. Para que não nos tornemos como o irmão do filho pródigo, é preciso constantemente avaliarmos se estamos apenas “em casa” ou se estamos verdadeiramente vivendo a graça e o amor do Pai.

Que não sejamos apenas igrejados, com templos sobre nossas cabeças e agendas cheias de atividades, mas que possamos ser verdadeiros discípulos de Cristo, conhecidos pelo amor, pela misericórdia e pela graça que vivemos e compartilhamos com o mundo. Que nossa identidade não esteja em uma denominação ou estrutura, mas no Cristo que nos chamou das trevas para a Sua maravilhosa luz.

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Casado com Janaína e pai do Ulisses. Tutor da Zaira (Chow-Chow) e do Paçoca (hamster). Escritor por hiperfoco e autista de nascença. Membro e presbítero da Igreja REMIDI e missionário pelo PRONASCE. Teólogo, Filósofo e Pedagogo em formação. Especialista em Docência do Ensino Superior e em Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva. Meus autores preferidos são: Agostinho, Kierkegaard, João Wesley, Karl Barth, Bonhoeffer, Tillich, C. S. Lewis, Stott e alguns pais da igreja. Meus hobbys são: ler, assistir filmes e séries.

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