No vasto panorama do cristianismo contemporâneo, uma figura peculiar tem se destacado: a do líder eclesiástico que, com uma ferocidade canina, defende sua interpretação bíblica como a única verdade inquestionável. Chamo esse fenômeno de “Síndrome do Cão de Deus”. Esses pastores e líderes agem como cães de guarda, prontos a distribuir mordidas teológicas a qualquer um que ouse divergir de suas posições. Esta atitude, embora mascarada como zelo pela fé, revela uma idolatria oculta, na qual pretensas posições bíblicas são elevadas acima da graça e do amor divinos.
A base dessa síndrome reside na visão distorcida de que Deus é incapaz de se defender e, portanto, precisa de defensores humanos para proteger Sua honra e verdade. Essa visão, além de subestimar a soberania e o poder de Deus, promove uma abordagem militante e agressiva em debates teológicos. Em vez de fomentar um ambiente de diálogo e crescimento mútuo, esses líderes transformam a divergência em um campo de batalha, onde a misericórdia e a compaixão são sacrificadas em nome de uma ortodoxia rígida e intransigente.
É importante destacar que não há nada de errado em ter uma posição teológica firme. Pelo contrário, a reflexão e a convicção são elementos essenciais da fé cristã. No entanto, o problema surge quando essa posição se torna um ídolo, e qualquer outra perspectiva é tratada como heresia a ser extirpada. Os assuntos teológicos, muitas vezes complexos e multifacetados, são simplificados de forma perigosa, e teólogos que dedicaram anos ao estudo e à meditação são desconsiderados em favor de respostas rápidas e absolutas.
Essa idolatria da ortodoxia é particularmente evidente em questões que ainda não possuem um fechamento teológico claro. Debates sobre dicotomia e tricotomia, a predestinação, ou a interpretação de passagens escatológicas, por exemplo, continuam a gerar discussões entre estudiosos sérios e comprometidos. No entanto, para o Cão de Deus, essas questões são resolvidas com uma certeza que beira a arrogância. Qualquer desvio de sua interpretação é visto como uma ameaça a ser eliminada, e não como uma oportunidade de crescimento e entendimento.
Além disso, a síndrome do Cão de Deus desvirtua a verdadeira missão do apologeta. A apologética cristã deveria ser um exercício de defesa da fé com gentileza e respeito, como nos exorta 1 Pedro 3:15. No entanto, o apologeta transvestido de cão de guarda transforma-se em um combatente feroz, cuja principal arma é a agressividade verbal. Ao invés de atrair os perdidos com o amor de Cristo, afasta-os com a dureza de sua abordagem.
Para combater essa síndrome, é crucial que pastores e líderes eclesiásticos voltem-se para a verdadeira essência do Evangelho: graça, amor e compaixão. Precisamos lembrar que nossa missão não é proteger Deus, mas refletir Sua luz ao mundo. Isso envolve ouvir, compreender e acolher aqueles que pensam diferente de nós. A diversidade teológica, longe de ser uma ameaça, é um convite ao crescimento mútuo e ao aprofundamento da nossa fé.
Portanto, a Síndrome do Cão de Deus é uma idolatria que distorce a verdadeira natureza da fé cristã. Em vez de morder e atacar, sejamos líderes que refletem a graça e o amor de Deus, reconhecendo que a verdadeira defesa da fé está na humildade, na compaixão e no respeito pelo outro. Somente assim poderemos construir uma comunidade de fé verdadeiramente centrada em Cristo.
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Casado com Janaína e pai do Ulisses. Tutor da Zaira (Chow-Chow) e do Paçoca (hamster). Escritor por hiperfoco e autista de nascença. Membro e presbítero da Igreja REMIDI e missionário pelo PRONASCE. Teólogo, Filósofo e Pedagogo em formação. Especialista em Docência do Ensino Superior e em Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva. Meus autores preferidos são: Agostinho, Kierkegaard, João Wesley, Karl Barth, Bonhoeffer, Tillich, C. S. Lewis, Stott e alguns pais da igreja. Meus hobbys são: ler, assistir filmes e séries.