O Merthiolate que Não Arde e a Sociedade que Não Sente

Na prateleira do tempo, há quem sinta saudade de uma época onde o merthiolate ardia. Esses, nostálgicos do desconforto, parecem lamentar a perda de uma dorzinha que, para eles, fazia a diferença entre a infância e o hoje. O que me espanta é o carinho com que abraçam essa lembrança, como se aquele ardor fosse uma espécie de rito de passagem, um batismo de fogo que validasse o sofrimento e, por conseguinte, a maturidade.

Crescemos com a ideia de que o sofrimento molda o caráter, de que a dor é uma ferramenta indispensável para esculpir uma vida digna. Não nego que a dor tem sua função; ela ensina, alerta, amadurece. No entanto, a apologia ao sofrimento pelo sofrimento é, no mínimo, uma distorção perigosa. Na história da fé, os cristãos do primeiro século são frequentemente mencionados como exemplos de resiliência e coragem. Sofriam, sim, mas o faziam por algo maior que a dor: o nome de Cristo. Não era a dor que buscavam, mas o propósito que ela, por vezes, acompanhava.

A grande confusão que vejo hoje em dia é o desejo insano de evitar qualquer forma de sofrimento, como se a dor fosse um vírus a ser erradicado. Isso, em sua essência, é infantilidade. Um medo irracional de se machucar, de encarar a vida em toda a sua complexidade e, inevitavelmente, em seus percalços. A evolução tecnológica e social nos trouxe conforto e longevidade, mas também uma fragilidade emocional. Há menos batalhas físicas, mas as emocionais se intensificaram, e ainda assim, muitos desejam evitar até mesmo essas.

A ironia reside no fato de que, apesar de vivermos em uma era de relativa paz e bem-estar, alguns ainda desejam retornar aos tempos de dor mais acentuada. Aqueles que sentem falta do merthiolate que arde, que veem na dor um mérito ou uma medalha, me parecem mascarar uma espécie de masoquismo disfarçado de romantismo. Contudo, é uma armadilha desejar que outros compartilhem dessa visão distorcida, como se o sofrimento pessoal fosse uma experiência que devesse ser universalizada, imposta.

Vivemos tempos em que o sofrimento virá, como sempre veio, em sua medida própria e de formas talvez inesperadas. Mas não precisamos buscá-lo, tampouco o infligir a nós mesmos ou aos outros. Isso não é maturidade, é crueldade. E, paradoxalmente, ao abraçarmos essa postura, acabamos sendo menos resilientes, mais frágeis, pois confundimos força com a capacidade de suportar a dor, quando, na verdade, força é a capacidade de viver plenamente, enfrentando o sofrimento quando necessário, mas sem o desejo de carregá-lo como um fardo autoimposto.

Que deixemos o sofrimento vir quando tiver que vir, sem saudade do que nos ardia, sem medo do que pode nos ferir, mas também sem a infantilidade de fugir de qualquer desconforto. O equilíbrio, como sempre, reside em reconhecer a inevitabilidade da dor, mas também em saber quando a evitar não é covardia, mas sabedoria.

Perguntas para Refletir

  1. Estamos realmente aprendendo com o sofrimento ou apenas romantizando a dor passada?
  2. Até que ponto evitar o sofrimento nos torna mais frágeis emocionalmente?
  3. É possível amadurecer sem transformar a dor em um fardo constante?

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Casado com Janaína e pai do Ulisses. Tutor da Zaira (Chow-Chow) e do Paçoca (hamster). Escritor por hiperfoco e autista de nascença. Membro e presbítero da Igreja REMIDI e missionário pelo PRONASCE. Teólogo, Filósofo e Pedagogo em formação. Especialista em Docência do Ensino Superior e em Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva. Meus autores preferidos são: Agostinho, Kierkegaard, João Wesley, Karl Barth, Bonhoeffer, Tillich, C. S. Lewis, Stott e alguns pais da igreja. Meus hobbys são: ler, assistir filmes e séries.

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