Crônicas

Olhos Abertos Também Sabem Orar

Nunca consegui fechar os olhos ao orar. Não é por falta de respeito, falta de fé ou, como alguns talvez insinuem, rebeldia. É pelo excesso de barulho. Não o barulho do mundo lá fora – esse eu já aprendi a tolerar. É o som contínuo, insistente, que reverbera dentro da minha cabeça. Pensamentos, imagens, fragmentos de frases, memórias, vozes sem som, tudo se agitando como se o silêncio fosse impossível.

E é justamente isso que me impede de fechar os olhos. Porque, ao fechá-los, parece que tudo aquilo ganha mais força. A escuridão vira um palco, e as vozes se tornam espectadores prontos para aplaudir o caos. Então, mantenho os olhos abertos. Não porque a paisagem me distraia, mas porque me ancora. Olho para o chão, para o teto, ou para o vazio, e ali consigo me encontrar com Deus.

Uma vez, durante o seminário, uma irmã dirigia o momento de oração e reparou em mim. Ela ficou nervosa. Para ela, fechar os olhos era o símbolo da concentração, da reverência, da espiritualidade verdadeira. Um corpo parado, olhos cerrados, mãos unidas: o molde ideal. Depois da oração, ela me abordou com preocupação e quase uma pitada de acusação. “Por que você não fechou os olhos, irmão?”

Tentei explicar – ainda que a explicação parecesse mais um pedido de desculpas. Disse que não conseguia, que o barulho me atrapalhava, que eu precisava dos olhos abertos para não perder o fio da conversa com o Altíssimo. Ela sorriu educadamente, mas não sei se entendeu. Talvez tenha me achado estranho.

Estranho… Uma palavra que me acompanha desde sempre. Talvez isso tenha a ver com o fato de eu ser autista. Minha mente funciona em ritmos e estímulos que nem sempre se alinham com as expectativas alheias. Há conexões que só eu percebo e barulhos que só eu ouço. Não encaro isso como um defeito – apenas uma particularidade. Para alguns, fechar os olhos ajuda a silenciar o mundo. Para mim, abrir os olhos é o que traz esse silêncio.

A verdade é que, na nossa tentativa de uniformizar a fé, criamos padrões de espiritualidade. Padrões que, muitas vezes, só servem para excluir quem não se encaixa. O que dizer dos cegos, que nunca puderam fechar os olhos para encontrar Deus? Ou dos distraídos, dos ansiosos, dos neurodivergentes, que só conseguem focar quando deixam o olhar pousar em algo real? Será que essas orações valem menos? Será que Deus escuta com menos atenção?

Jesus, em seu ministério, nunca instituiu um “modo correto” de se orar. Aliás, ele condenou os fariseus que transformavam a oração em um espetáculo, em um molde de perfeição visível. “Quando orares, entra no teu quarto, fecha a porta e ora ao teu Pai em secreto” (Mt 6:6). Talvez o “fechar a porta” seja menos sobre fechar os olhos e mais sobre encontrar um jeito sincero de falar com o Pai.

O Deus que ouve as orações também vê os corações. E o coração que ora não precisa de manual. Ele pode sussurrar no escuro, clamar em lágrimas, ou, como no meu caso, encontrar descanso nos olhos abertos. Porque, afinal, oração não é um ato mecânico. É um encontro. E no encontro com o Eterno, não há moldes.

Por isso, aos que me virem orando com os olhos abertos, peço apenas que não se assustem. Talvez eu esteja enxergando algo que vocês não veem. Talvez, para mim, o céu se revela mais claro assim.

Que Deus nos livre da tentação de padronizar a espiritualidade e nos ajude a lembrar que Ele escuta as vozes, os silêncios e até os olhos que oram.

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Casado com Janaína e pai do Ulisses. Tutor da Zaira (Chow-Chow) e do Paçoca (hamster). Escritor por hiperfoco e autista de nascença. Membro e presbítero da Igreja REMIDI e missionário pelo PRONASCE. Teólogo, Filósofo e Pedagogo em formação. Especialista em Docência do Ensino Superior e em Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva. Meus autores preferidos são: Agostinho, Kierkegaard, João Wesley, Karl Barth, Bonhoeffer, Tillich, C. S. Lewis, Stott e alguns pais da igreja. Meus hobbys são: ler, assistir filmes e séries.

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