Só os Sonhos de Deus Importam

Existe uma insistência moderna, quase uma obsessão, em associar Deus à realização de sonhos pessoais. Em sermões populares, conferências e até mesmo em letras de músicas cristãs, encontramos frases que insinuam que o propósito divino está vinculado à satisfação de nossos desejos terrenos. Mas será que essa perspectiva reflete realmente a mensagem bíblica? Será que Deus, o Criador dos céus e da terra, está comprometido em realizar nossos sonhos de riqueza, conforto e sucesso? A realidade, tanto bíblica quanto teológica, aponta para outra direção, uma que muitos preferem ignorar.

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Nos Salmos, particularmente no Salmo 37:4, encontramos a famosa passagem: “Deleite-se no Senhor, e ele atenderá aos desejos do seu coração.” Esse versículo tem sido utilizado para promover a ideia de que Deus é o realizador dos nossos desejos mais íntimos. Contudo, a leitura atenta do texto revela algo muito mais profundo. O contexto sugere que o coração do homem deve estar alinhado ao deleite no Senhor, ou seja, nossos desejos precisam ser transformados para refletir os de Deus. É um erro crasso acreditar que Deus é um “gênio da lâmpada” que existe para satisfazer nossos caprichos. Como Jeremias 29:11 nos lembra, os planos de Deus são para nos fazer o bem; e Isaías 55:8-99 diz que os caminhos e os pensamentos de Deus são mais altos que os nossos. Ele tem planos que transcendem nossas ambições imediatistas.

O Novo Testamento nos apresenta uma imagem ainda mais desafiadora. Jesus, em Sua oração no Getsêmani (Mateus 26:39), nos dá o exemplo definitivo: “Todavia, não seja como eu quero, mas como tu queres.” Aqui está o cerne da questão: o compromisso de Deus é com Sua própria vontade, e não com nossos sonhos particulares. Deus não está preso aos nossos planos; pelo contrário, Ele muitas vezes os desfaz para que Sua soberana vontade se cumpra.

Em João 12:24, Jesus diz: “Se o grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas se morrer, dá muito fruto.” Este princípio de morte e renascimento está no coração do Evangelho. Para que a verdadeira vida de Deus se manifeste, nossos sonhos terrenos muitas vezes precisam ser “plantados” na terra e morrer. Não é uma questão de Deus realizar nossos sonhos, mas de Ele nos moldar e transformar à Sua imagem, por meio da renúncia de nossos desejos egoístas.

Muitos profetas experimentaram essa desconstrução de sonhos. O próprio Jeremias, em seu chamado (Jeremias 1:10), foi designado para “arrancar e derrubar, para destruir e demolir”, antes de “edificar e plantar.” A destruição de sonhos é parte do processo divino de nos alinhar à Sua perfeita vontade. E isso pode ser doloroso. Paulo, o grande apóstolo, também experimentou isso. Ele tinha um espinho na carne que o impediu de se gloriar em suas realizações (2 Coríntios 12:7-9). Seus sonhos de uma vida sem sofrimento físico foram despedaçados, mas, em troca, ele recebeu a graça suficiente de Deus.

Quando olhamos para a oração que Jesus ensinou, o Pai Nosso, a primeira grande declaração é: “Seja feita a Tua vontade, assim na terra como no céu” (Mateus 6:10). Isso deveria nos despertar para a realidade de que Deus está comprometido exclusivamente com a realização de Sua própria vontade. Ele não é obrigado a realizar nossos desejos de bens materiais, reconhecimento social, uma carreira de sucesso, ou uma família perfeita. Essas coisas, quando alinhadas com a vontade de Deus, podem ser alcançadas, sim, mas elas nunca foram o foco de Sua missão.

A verdade que muitos tentam evitar é que, frequentemente, Deus destrói nossos sonhos. Ele nos quebra, para que possamos ser moldados em algo maior, algo que reflete Sua glória. Em 1 Coríntios 3:19, lemos que “a sabedoria deste mundo é loucura diante de Deus.” O que o mundo valoriza – poder, prestígio, conforto – é considerado loucura aos olhos de Deus. Ele não está comprometido em nos dar esses valores; Ele está comprometido em nos conformar à imagem de Cristo.

É fundamental que entendamos: Deus não é um cumpridor de promessas segundo nossa perspectiva limitada. Ele não está interessado em garantir que cada sonho que temos se realize. Ele está interessado em nos conformar ao Seu caráter e vontade, ainda que isso signifique o completo desmantelamento de nossas expectativas e aspirações terrenas. E isso, longe de ser pessimismo, é a realidade que nos leva a uma vida mais plena e verdadeira. Afinal, a realidade última é que Deus está no controle de tudo, e nossa única esperança é alinhar nossos corações com o d’Ele, como nos ensina Romanos 8:28, quando nos assegura que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus, daqueles que são chamados segundo o Seu propósito.

Se a realidade te incomoda, talvez seja hora de reavaliar se sua insatisfação não é, na verdade, com o próprio Senhor da realidade. Deus, em Sua infinita sabedoria, tem planos que não podemos compreender, e muitas vezes, esses planos exigem que nossos sonhos sejam quebrados. E, nesse processo, Ele nos oferece algo infinitamente melhor: a Sua presença, a Sua paz e a certeza de que Sua vontade é sempre boa, perfeita e agradável.

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Casado com Janaína e pai do Ulisses. Tutor da Zaira (Chow-Chow) e do Paçoca (hamster). Escritor por hiperfoco e autista de nascença. Membro e presbítero da Igreja REMIDI e missionário pelo PRONASCE. Teólogo, Filósofo e Pedagogo em formação. Especialista em Docência do Ensino Superior e em Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva. Meus autores preferidos são: Agostinho, Kierkegaard, João Wesley, Karl Barth, Bonhoeffer, Tillich, C. S. Lewis, Stott e alguns pais da igreja. Meus hobbys são: ler, assistir filmes e séries.

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