
Entre a Cruz e os Grilhões: A Escravidão e a Ambivalência Histórica do Cristianismo
Introdução
A escravidão foi uma das instituições mais cruéis e persistentes da história humana. Entre os séculos XV e XIX, milhões de africanos foram arrancados de suas terras e submetidos a uma existência de servidão, violência e desumanização. O que causa perplexidade é o fato de que, durante grande parte desse período, o Cristianismo — a religião do Deus encarnado como servo — foi usado tanto para justificar quanto para combater a escravidão.
Este ensaio propõe uma análise teológico-histórica dessa ambivalência, comparando as justificativas oferecidas por católicos e protestantes, tanto a favor quanto contra a escravidão. A partir disso, refletimos sobre a relação entre fé e poder, Bíblia e ética, e o lugar da Igreja entre a acomodação ao mundo e a fidelidade ao Evangelho.
Leia também: Cristianismo e Igreja: Colonialismo e Escravidão
1. O Cristianismo em Território Ambíguo
Desde suas origens, o Cristianismo enfrentou o desafio de coexistir com instituições sociais profundamente estabelecidas no mundo antigo, entre elas o patriarcado, a desigualdade de classes, o sistema de castas e, de modo particularmente cruel e duradouro, a escravidão. No Império Romano do primeiro século, estima-se que entre um terço e metade da população urbana fosse composta por pessoas escravizadas — uma realidade considerada natural e inquestionável por muitos. Dentro desse contexto, a fé cristã nascente foi, ao mesmo tempo, contestadora e conformista.
De um lado, os Evangelhos apresentam uma ética de fraternidade radical. Jesus se identifica com os últimos da sociedade — pobres, doentes, excluídos, estrangeiros, mulheres e crianças. Seu ministério proclama a chegada de um Reino no qual “os últimos serão os primeiros” e os cativos serão libertos (cf. Lc 4:18; Mt 25:40). A encarnação do Filho de Deus como servo (cf. Fl 2:6–8) desafia frontalmente as estruturas de dominação, inclusive a escravidão.
O testemunho dos primeiros cristãos reforça essa visão: nas cartas paulinas, especialmente em Gálatas 3:28, afirma-se que “em Cristo, não há escravo nem livre”, indicando uma ruptura teológica com a hierarquia social dominante. A epístola a Filemom, em que Paulo apela por Onésimo — um escravo fugitivo — para que seja recebido “não como escravo, mas como irmão amado” (Flm 1:16), representa um embrião da ética cristã libertadora.
Contudo, ao mesmo tempo, os cristãos do primeiro século não iniciaram um movimento explícito de abolição da escravidão. A Igreja primitiva buscava sobrevivência em um contexto hostil, e muitas vezes optou por uma ética de acomodação: recomendava aos escravos que obedecessem a seus senhores “como a Cristo” (cf. Ef 6:5), e aos senhores que tratassem seus servos com justiça e sem ameaças (cf. Ef 6:9). A perspectiva apocalíptica — de que o mundo logo passaria — também pode ter influenciado essa postura não revolucionária.
Esse padrão se repetiu, com variações, ao longo dos séculos. No medievo, a Igreja Católica reconhecia juridicamente a escravidão, ainda que impusesse certas limitações morais. Escravidão por dívida, por guerra, por punição ou por heresia eram consideradas lícitas. A cristandade não só tolerava, mas muitas vezes institucionalizava a escravidão como parte da ordem social e espiritual.
No advento da modernidade e da expansão colonial europeia (séculos XV a XVIII), a escravidão transatlântica ganhou novas dimensões: baseada em raça, lucrativa, massificada e brutalmente desumanizadora. E mesmo diante dessa transformação radical, grande parte da Igreja — tanto católica quanto protestante — falhou em reconhecer imediatamente o mal estrutural do sistema, e frequentemente o legitimou teologicamente.
A ambiguidade do Cristianismo diante da escravidão, portanto, não é um acidente, mas fruto de uma tensão permanente entre a mensagem do Reino e as pressões culturais, políticas e econômicas. Em muitos momentos, os cristãos foram incapazes de aplicar plenamente os princípios do Evangelho às estruturas injustas que os cercavam.
Esse cenário se repete tanto entre protestantes quanto entre católicos. Teólogos reformados, puritanos, anglicanos, jesuítas, dominicanos, papas, bispos, pastores, todos tiveram representantes em ambos os lados da história: uns como cúmplices ou articuladores do cativeiro, outros como vozes proféticas de denúncia e libertação.
A diferença fundamental entre esses grupos não estava na confissão de fé, mas sim na postura hermenêutica diante das Escrituras e na adesão ou resistência à lógica do poder dominante. Aqueles que leram a Bíblia à luz da cruz e da ressurreição — e não à sombra do trono ou do mercado — foram capazes de reconhecer que o Deus de Jesus Cristo não deseja senhores e escravos, mas irmãos e irmãs.
2. A Bíblia: Fonte de Libertação ou Legitimadora da Servidão?
A Bíblia foi, ao longo dos séculos, a principal arena textual do debate escravagista dentro do Cristianismo. Tanto defensores quanto opositores da escravidão recorreram às Escrituras Sagradas para fundamentar suas posições. Não é exagero dizer que a mesma Bíblia que inspirou escravos a sonhar com liberdade foi usada para manter as correntes de ferro em seus pulsos. O que muda, portanto, não é o texto em si, mas o modo como ele é lido, interpretado e aplicado.
Entre os textos preferidos dos defensores da escravidão, destacam-se Efésios 6:5 (“vós, servos, obedecei a vossos senhores segundo a carne, com temor e tremor, na sinceridade do vosso coração, como a Cristo”) e Colossenses 3:22, além das instruções em 1 Timóteo 6:1-2. Esses trechos, tomados isoladamente e sem leitura crítica, foram considerados suficientes para justificar a submissão dos escravizados e legitimar os senhores como representantes da autoridade divina.
No Antigo Testamento, passagens como Levítico 25:44–46 autorizam explicitamente a posse de escravos de outros povos como propriedade hereditária. Isso era interpretado como prova de que Deus aprova a escravidão como instituição legítima — desde que ela fosse praticada com alguma forma de humanidade e evangelização.
Outro argumento poderoso dos proponentes da escravidão era o chamado “silêncio de Jesus”. Como o Cristo dos Evangelhos não faz nenhuma condenação explícita à escravidão — mesmo vivendo em uma sociedade onde ela era comum —, isso foi interpretado como endosso tácito ou, ao menos, neutralidade ética. Essa ausência de uma condenação direta foi usada para argumentar que a Igreja também não deveria se posicionar contra a prática, especialmente quando ela servia a objetivos considerados “cristãos”, como a evangelização dos povos africanos ou a preservação da ordem social.
Em contraste, os cristãos abolicionistas desenvolveram uma hermenêutica centrada na mensagem redentora do Evangelho, argumentando que a essência da fé cristã é libertadora. Para esses intérpretes, a leitura da Bíblia não poderia se limitar à reprodução de práticas sociais da antiguidade, mas deveria ser guiada pelo espírito da revelação progressiva e pela ética do Reino de Deus.
Textos como Gálatas 3:28 (“não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”) e João 8:36 (“se o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres”) foram elevados como expressões da nova humanidade inaugurada por Cristo — uma humanidade onde toda forma de dominação de um ser humano sobre outro é abolida. Também foram evocadas as imagens do Êxodo, onde Deus liberta seu povo da escravidão no Egito, e as constantes denúncias proféticas do Antigo Testamento contra a opressão dos pobres, viúvas, órfãos e estrangeiros.
Para os abolicionistas cristãos, a Escritura só pode ser fielmente compreendida quando interpretada à luz da vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo, aquele que assumiu a forma de servo (cf. Filipenses 2:7) e lavou os pés de seus discípulos como modelo de liderança e comunhão. O Evangelho, portanto, não apenas tolera a liberdade: ele a exige como expressão da vontade de Deus.
👉 Assim, a questão fundamental não era sobre qual Bíblia se usava, mas como se lia essa Bíblia: com os olhos do poder ou com os olhos dos oprimidos; como um livro que legitima hierarquias sociais e econômicas, ou como Palavra viva que anuncia um novo mundo onde ninguém é dono de ninguém, mas todos são irmãos.
Essa disputa hermenêutica revelou algo profundo: a Bíblia pode ser arma ou bálsamo, corrente ou chave, conforme o coração e o horizonte de quem a interpreta. Quando a Escritura é lida com os olhos da cruz — da entrega, da justiça e da solidariedade —, ela se torna fonte de libertação. Quando, porém, é lida sob o peso do trono e do lucro, ela se torna instrumento de dominação.
3. Teologia a Serviço da Ordem ou da Justiça?
A teologia, como reflexão sobre Deus e a vida humana à luz da fé, nunca é neutra: ela pode ser usada para sustentar o status quo ou para desafiar as estruturas injustas do mundo. No caso da escravidão, a história revela com clareza essa ambivalência: a mesma teologia cristã foi utilizada tanto para justificar a servidão quanto para combatê-la.
Durante séculos, tanto teólogos católicos quanto protestantes recorreram a fundamentos filosóficos pré-cristãos, especialmente à filosofia aristotélica, para defender a legitimidade da escravidão. Aristóteles, em sua obra Política, afirmava que existiam seres humanos que eram “escravos por natureza”, ou seja, pessoas que, por sua inferioridade racional e moral, nasceram para serem dominadas por outras. Essa noção foi assimilada pela tradição escolástica medieval, particularmente por Tomás de Aquino, que afirmou na Suma Teológica que a escravidão não é contra o direito natural, desde que ocorra em contextos legítimos (como guerra ou castigo) e que os escravizados fossem tratados com justiça.
Essa ideia de “ordem natural” — hierárquica, fixa e divinamente instituída — foi absorvida também por teólogos protestantes reformados, especialmente em contextos coloniais. Por exemplo, John Cotton, importante teólogo puritano do século XVII na Nova Inglaterra, defendia que Deus havia estabelecido diferentes posições sociais (senhores e servos, governantes e governados) e que rebelar-se contra essa ordem era pecado. Da mesma forma, George Whitefield, pregador avivalista do século XVIII, embora falasse sobre amor cristão e salvação, defendeu a legalização da escravidão na colônia da Geórgia para garantir o sustento de seus orfanatos — argumentando que os escravizados, ao receberem o Evangelho, estariam melhor do que em seus contextos de origem.
Essa teologia da “ordem” permitiu que papas, bispos, missionários e pastores atuassem como cúmplices institucionais da escravidão, muitas vezes se escondendo atrás de uma ética paternalista: o cativo deveria ser tratado com benevolência, ser batizado, educado, ensinado a obedecer e, assim, encontrar sentido e salvação em sua condição subalterna. Na prática, isso transformou a fé cristã em instrumento de legitimação do colonialismo, do racismo teológico e da desigualdade.
Tipo de Argumento | Protestantes a favor da escravidão | Católicos a favor da escravidão |
---|---|---|
1. Argumento bíblico direto | A Bíblia não proíbe a escravidão e a regula (Ef 6:5; Cl 3:22; 1Tm 6:1-2). | A Bíblia reconhece e regula a escravidão no AT e NT; não há condenação explícita. |
2. Exemplos patriarcais | Abraão, Isaque, Jacó, todos tinham servos; logo, é prática legítima. | Patriarcas bíblicos e santos da Igreja conviveram com a escravidão sem condená-la. |
3. Ordem natural / hierarquia | A escravidão está dentro de uma hierarquia social natural instituída por Deus. | Seguindo Aristóteles e Tomás de Aquino: há “escravos por natureza”; alguns nasceram para servir. |
4. Guerra justa / punição | Escravidão pode ser punição legítima ou consequência de guerra. | Escravidão permitida em casos de guerra justa, heresia, ou punição por crime ou idolatria. |
5. Evangelização | A escravidão traz o africano ao alcance do Evangelho e da salvação. | A escravidão “salva almas”, pois o escravizado pode ser catequizado e batizado. |
6. Economia e providência | A escravidão sustenta a ordem social e econômica estabelecida por Deus. | A economia colonial exige escravidão; a providência divina dispõe os povos segundo funções. |
7. Silêncio de Jesus | Jesus nunca condenou diretamente a escravidão, logo ela é neutra. | O silêncio de Cristo e dos apóstolos mostra que a escravidão não é essencialmente pecaminosa. |
Porém, nem todos os teólogos e líderes cristãos se curvaram a essa lógica. Desde os primeiros contatos com os povos escravizados nas Américas, vozes proféticas começaram a se levantar contra essa teologia de dominação. O frade dominicano Bartolomeu de las Casas, que inicialmente apoiou a escravidão africana como alternativa à indígena, mais tarde se tornou um dos mais aguerridos críticos da escravidão em qualquer forma, escrevendo tratados inflamados contra a desumanização dos povos nativos. Já São Pedro Claver, missionário jesuíta na Colômbia, autodeclarava-se “escravo dos escravos para sempre”, vivendo entre os africanos cativos, cuidando deles fisicamente e denunciando os maus-tratos.
No campo protestante, John Wesley, fundador do metodismo, escreveu uma famosa carta intitulada Thoughts upon Slavery (1774), na qual denunciava veementemente a crueldade da escravidão transatlântica e chamava os cristãos ao arrependimento coletivo. Sua teologia centrada na santidade pessoal e social o levou a crer que a verdadeira conversão não poderia coexistir com a posse de seres humanos.
Outros nomes como Sojourner Truth — mulher negra, ex-escravizada, evangelista e abolicionista — e William Wilberforce, parlamentar e evangélico inglês, mostraram que a fé cristã podia ser um fator de mobilização política e resistência moral. Ambos consideravam a escravidão uma ofensa direta ao Deus criador e redentor, e lutaram com fervor até a abolição legal do comércio de escravos no Império Britânico.
Tipo de Argumento | Protestantes contra a escravidão | Católicos contra a escravidão |
---|---|---|
1. Imago Dei (imagem de Deus) | Todos os seres humanos são criados à imagem de Deus e iguais em dignidade. | Nenhum ser humano pode ser propriedade de outro; todos são imagem de Deus. |
2. Cristo libertador | Cristo veio para “libertar os cativos” (Lc 4:18); o Evangelho é liberdade. | Cristo veio redimir todos, e a escravidão contradiz o Evangelho de liberdade e justiça. |
3. Fraternidade universal | Em Cristo, “não há judeu nem grego, escravo nem livre” (Gl 3:28). | Todos são irmãos em Cristo; a escravidão rompe essa fraternidade. |
4. Prática cristã verdadeira | Escravizar o próximo nega o amor cristão e o mandamento de amar o próximo. | Escravizar é uma forma de violência institucionalizada, incompatível com a caridade. |
5. Testemunho profético | O cristão deve denunciar o pecado estrutural; a escravidão é um sistema de pecado. | Os profetas denunciaram a opressão dos pobres; o discípulo deve fazer o mesmo. |
6. Experiência pastoral direta | Contato com os sofrimentos dos escravizados revela a injustiça do sistema. | Missionários entre indígenas e africanos viam na prática o quanto a escravidão os destruía. |
7. Direito natural / racional | Nenhum ser humano nasce para ser possuído; liberdade é um direito dado por Deus. | A razão, iluminada pela fé, reconhece que a escravidão é contra a lei natural. |
Esse contraste entre uma teologia da ordem (que acomoda e justifica as estruturas sociais opressoras) e uma teologia da justiça (que denuncia o pecado institucionalizado e se solidariza com os marginalizados) expõe um dilema permanente da fé cristã: serviremos ao Reino de Deus ou aos reinos deste mundo?
A escravidão, nesse sentido, tornou-se um teste histórico da integridade teológica cristã. A teologia que serviu aos interesses coloniais e econômicos revelou-se cúmplice da opressão. Já a teologia que brotou do sofrimento dos cativos e da compaixão dos profetas revelou-se mais próxima do Cristo crucificado — aquele que se fez servo e que veio libertar os cativos.
4. A Igreja Entre Pilatos e os Profetas
A metáfora de uma Igreja entre Pilatos e os profetas é, talvez, uma das mais contundentes para descrever sua postura diante da escravidão ao longo da história. Pilatos, símbolo do poder que lava as mãos diante da injustiça para preservar a estabilidade política, representa os momentos em que as instituições eclesiásticas optaram pelo silêncio, pela neutralidade cúmplice ou pela justificativa teológica da opressão. Já os profetas, figuras bíblicas que se levantavam contra os poderosos em nome da justiça de Deus, encarnam a vocação mais profunda da fé cristã: a denúncia do pecado institucionalizado e a solidariedade com os humilhados.
A realidade histórica mostra que as Igrejas — católica e protestantes — foram frequentemente reativas e lentas diante da crueldade do sistema escravista. A maioria das condenações eclesiásticas só ocorreu quando os ventos políticos e sociais já começavam a soprar em direção à abolição.
Um exemplo emblemático disso é a bula In Supremo Apostolatus (1839), na qual o Papa Gregório XVI condena o tráfico de escravos. Embora esse documento tenha representado um marco importante, veio séculos após o início do tráfico transatlântico, quando milhões já haviam sido capturados, transportados e mortos. Além disso, a bula teve pouco efeito prático em regiões como o Brasil, onde a Igreja continuava atuando em parceria com elites escravocratas.
Entre os protestantes, o cenário não foi muito diferente. Igrejas reformadas, anglicanas e batistas mantiveram laços profundos com a escravidão em contextos como os Estados Unidos e o Caribe. Em muitos casos, líderes e pastores possuíam escravizados, pregavam a submissão como virtude cristã e viam o cativeiro como um “mal necessário” para o progresso das nações cristãs.
A lentidão institucional, porém, não foi ausência total de profetismo. Em todos os séculos de escravidão, houve vozes cristãs que se ergueram — muitas vezes à margem das estruturas oficiais — para proclamar que a escravidão era incompatível com o Evangelho.
Entre os católicos, destacam-se ordens como os dominicanos, franciscanos e capuchinhos, cujos missionários em terras americanas denunciaram as violências contra indígenas e africanos. Embora nem todos tivessem uma visão plenamente abolicionista, muitos deles desafiavam as autoridades civis e eclesiásticas, buscando proteger os povos escravizados, oferecer-lhes catequese sem imposição forçada e interceder junto às autoridades por sua dignidade.
Na tradição protestante, os quakers (Sociedade dos Amigos) foram pioneiros no repúdio absoluto à escravidão. Já no século XVII, muitos deles se recusavam a possuir escravizados e passaram a atuar ativamente no movimento abolicionista, sustentando redes de fuga como a Underground Railroad. A fé quaker, baseada no princípio de que há “uma luz interior” em cada ser humano, tornava inadmissível a noção de que alguém pudesse ser propriedade de outrem.
Os metodistas wesleyanos, igualmente, encontraram na santidade prática uma exigência ética radical. John Wesley não apenas condenou a escravidão em seus escritos, mas inspirou gerações de cristãos a engajarem-se na luta abolicionista, como no caso de William Wilberforce, que travou uma batalha política e espiritual de décadas até a abolição do tráfico no Império Britânico em 1807.
Do lado das vítimas, também surgiram profetas. Sojourner Truth, mulher negra, escravizada e liberta, tornou-se pregadora itinerante, abolicionista e feminista, utilizando a Bíblia como arma contra seus opressores e afirmando sua fé como fonte de resistência e dignidade. A teologia encarnada de pessoas como ela nasceu não dos livros, mas do sofrimento, e transformou a dor em esperança.
Esse contraste entre a lentidão das estruturas eclesiásticas e a urgência da denúncia profética nos leva a um diagnóstico incômodo: a Igreja institucional muitas vezes preferiu preservar alianças políticas e econômicas a obedecer ao clamor do Evangelho. A cruz foi, muitas vezes, confundida com o cetro.
Entretanto, a tradição profética nunca foi totalmente sufocada. Mesmo quando silenciadas, marginalizadas ou perseguidas, as vozes dos que viam a escravidão como uma abominação perante Deus continuaram a ecoar. Esses homens e mulheres de fé — padres, frades, leigos, pastores, pregadoras, parlamentares — souberam discernir que o Reino de Deus não pactua com grilhões, mas com o grito dos cativos.
5. Lições para Hoje
Refletir sobre o passado não é um exercício meramente arqueológico, nem uma tentativa de julgar com superioridade moral os erros de nossos antecessores. Pelo contrário, é um chamado à responsabilidade histórica: ao olhar para a conivência da Igreja com a escravidão, somos desafiados a perguntar com seriedade e humildade:
Quais são as formas de escravidão contemporâneas que continuam sendo legitimadas, ignoradas ou toleradas pelas comunidades cristãs hoje?
A escravidão transatlântica pode ter sido abolida legalmente, mas suas estruturas e heranças persistem sob outras roupagens. O racismo estrutural, a desigualdade econômica crônica, a exclusão social, a marginalização de grupos vulneráveis e a exploração de corpos e consciências continuam a marcar a experiência de milhões de seres humanos — e não raro com o silêncio ou até a colaboração de setores religiosos.
5.1 Racismo estrutural e teologia do embranquecimento
A escravidão foi também um projeto de racialização teológica. Ainda hoje, a herança desse racismo “sagrado” sobrevive em muitas comunidades cristãs que, mesmo após séculos, não enfrentaram a fundo o pecado do racismo. Igrejas que permanecem majoritariamente brancas em contextos racialmente diversos, lideranças religiosas que evitam falar de questões raciais sob o pretexto de “neutralidade evangélica”, ou ainda teologias que associam benção à estética eurocêntrica — tudo isso revela uma forma sutil de manter grilhões mentais e espirituais.
5.2 A economia do cativeiro moderno
Em diversos contextos, a exploração econômica contemporânea não difere, em essência, da lógica escravagista: seres humanos são reduzidos a força de trabalho descartável, sem direitos, sem segurança, sem reconhecimento de sua dignidade. O trabalho infantil, a escravidão por dívida, o tráfico de pessoas e o subemprego massivo configuram um sistema que, embora legalizado ou invisibilizado, é opressor e desumanizante.
Infelizmente, muitas igrejas têm se calado ou se aliado aos interesses do capital, defendendo políticas que aumentam a pobreza, a precarização e o endividamento como se fossem vontade divina. O Evangelho, no entanto, nos chama a uma economia do cuidado e da justiça, não da acumulação e do consumo.
5.3 Capacitismo e exclusão das pessoas com deficiência
Assim como a escravidão naturalizou a inferioridade de determinados corpos e culturas, muitas comunidades cristãs hoje ainda operam a partir de uma lógica capacitista, tratando pessoas com deficiência como objeto de caridade, e não como sujeitos plenos de fé e dons espirituais. A ausência de acessibilidade, de inclusão litúrgica, de liderança com deficiência revela que a Igreja ainda reproduz uma estrutura de exclusão, mesmo sem perceber.
O Cristo encarnado, que tocou os intocáveis, curou os marginalizados e colocou no centro da mesa os que viviam à margem, constrange hoje qualquer espiritualidade que não reconheça o valor sagrado de cada corpo, mente e experiência humana.
5.4 Violência de gênero e silenciamentos
Em muitas tradições cristãs, as mulheres ainda são tratadas como secundárias, perigosas ou inferiores, mesmo que isso seja mascarado por discursos de “papéis distintos”. Teologias patriarcais continuam a sustentar estruturas de poder masculino, justificando a exclusão das mulheres da liderança, a submissão conjugal forçada e até o silêncio diante de abusos e violência doméstica.
A fidelidade ao Evangelho exige uma reinterpretação dos textos eclesiásticos à luz do testemunho de Jesus, que dialogou com mulheres, foi por elas sustentado, e escolheu Maria Madalena como primeira anunciadora da ressurreição.
5.5 Povos indígenas, minorias sexuais e novos “cativos”
Os povos originários seguem sendo expropriados, silenciados e catequizados à força por modelos de missão que não respeitam sua espiritualidade, cultura e modo de vida. Ao invés de escutar a voz profética da terra, da floresta e dos ancestrais, muitos projetos cristãos continuam reproduzindo lógicas coloniais.
Também as pessoas LGBTQIA+ muitas vezes experimentam a Igreja como espaço de dor, exclusão e condenação. Ainda que com argumentos doutrinários, o resultado concreto é a perpetuação de medo, rejeição e vergonha — o oposto do que o amor cristão deve provocar. Mesmo quem se diz “contra o pecado e a favor do pecador”, na prática muitas vezes nega a presença, os dons e a dignidade dessas pessoas como imagem de Deus.
5.6 A vocação profética da Igreja
A lição mais urgente da história da escravidão é que a Igreja precisa recuperar seu papel profético. Isso exige uma fé que se expressa em denúncia, ação e compromisso com os que sofrem — e não em neutralidade, institucionalismo e defesa de privilégios. O Reino de Deus, conforme anunciado por Jesus, não é um reino de estabilidade social, mas de subversão amorosa e libertadora.
Hoje, como ontem, a espiritualidade fiel ao Cristo crucificado se manifesta na solidariedade com os cativos modernos — os marginalizados, invisibilizados, excluídos. Ser fiel ao Evangelho de Jesus Cristo é rejeitar qualquer forma de escravidão — visível ou invisível, física ou espiritual — e assumir uma espiritualidade de libertação, inclusão e justiça.
Conclusão
A relação entre Cristianismo e escravidão é um espelho que reflete o melhor e o pior da fé cristã na história. De um lado, vemos a fé usada como instrumento de poder, dominação e racismo teológico. De outro, vemos o mesmo Evangelho sendo fonte de resistência, compaixão e libertação.
Entre os que lavam as mãos, como Pilatos, e os que levantam a voz, como os profetas, cabe à Igreja decidir onde se posicionar. Se Cristo morreu como servo, e venceu como redentor, não há lugar no seu Reino para os grilhões — nem os de ferro, nem os da indiferença.
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6. Protestantes a Favor da Escravidão
6. HOPKINS, John Henry. A Scriptural, Ecclesiastical, and Historical View of Slavery. Panfleto, 1861. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/A_Scriptural,_Ecclesiastical,_and_Historical_View_of_Slavery. Acesso em: 20 jun. 2025. Link: A Scriptural, Ecclesiastical, and Historical View of Slavery – Wikipedia
7. Jacobus Capitein’s “Treatise” (1742): A Theological Defence of Slavery. Estudo acadêmico. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Jacobus_Capitein. Acesso em: 17 jun. 2025. Link: Jacobus Capitein – Wikipedia
8. Slavery and the Bible: Using One to Either Justify or Condemn the Other. Pesquisador. Disponível em: https://www.researchgate.net. Acesso em: 14 jun. 2025. Link: (PDF) Slavery and the Bible: Using One to Either Justify or Condemn the Other
9. “SEVENTEEN CENTURIES OF SIN: The Christian Past in Antebellum Slavery Debates.” Church History. Disponível em: https://www.cambridge.org. Acesso em: 14 jun. 2025. Link: Seventeen Centuries of Sin: The Christian Past in Antebellum Slavery Debates | Church History | Cambridge Core
10. The Religious Defense of American Slavery Before 1830. Citação em McLeod. Disponível em: https://www.researchgate.net. Acesso em: 15 jun. 2025. Link: (PDF) Slavery and the Bible: Using One to Either Justify or Condemn the Other
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