Testemunha Inocente: Autismo e Ficção

Compartilhe

Acabei de assistir ao filme sul-coreano Testemunha Inocente e, enquanto o enredo possui todos os ingredientes de um thriller judicial cativante, a maneira como retrata o autismo me deixou com um gosto amargo. A trama gira em torno do julgamento de uma cuidadora acusada de homicídio. A vítima, um idoso, foi encontrada com um saco plástico na cabeça, e a questão é: foi suicídio ou assassinato? O ponto alto do filme está no depoimento de Ji-Woo, uma adolescente autista que presenciou o ocorrido.

Leia também: Crítica: Coringa: Delírio a Dois

A história é envolvente: um advogado de defesa determinado a absolver sua cliente se aproxima de Ji-Woo, oferecendo lanches e desafios lógicos para tentar entender o que ela viu. No entanto, durante o julgamento, ele a humilha, questionando sua capacidade de discernimento por conta de seu autismo. Mais tarde, ao perceber que talvez tenha cometido um erro, ele muda sua abordagem e finalmente a reconhece como uma testemunha confiável, mas apenas depois que ela demonstra uma capacidade memorável e quase sobre-humana de recordar detalhes precisos da cena do crime.

Como autista, não pude deixar de sentir que o filme reforça um estereótipo muito comum e problemático: a ideia de que só temos valor quando possuímos “supercapacidades.” Ji-Woo, inicialmente, é desacreditada por seu autismo, e apenas quando ela exibe uma memória prodigiosa é que sua voz ganha peso. Isso reflete uma visão capacitista predominante na sociedade e no cinema: se não houver uma habilidade extraordinária associada ao autismo, nossa palavra é colocada em dúvida, nossa capacidade é subestimada.

O filme é cliché em muitos aspectos, e ainda que se esforce para trazer uma representação autista, ele acaba se limitando à mesma velha narrativa. A representação de Ji-Woo é um reflexo de como o cinema e a sociedade ainda veem as pessoas autistas: seres misteriosos que só importam quando são úteis ou excepcionalmente habilidosos. Nossa humanidade, nossa voz, são frequentemente ignoradas a menos que sirvam a uma causa que os neurotípicos possam admirar ou capitalizar.

É importante que filmes como Testemunha Inocente existam, porque eles abrem portas para diálogos sobre representações mais inclusivas. No entanto, é preciso ir além. Ji-Woo não deveria ser ouvida apenas por sua capacidade de lembrar cada detalhe; ela deveria ser ouvida porque é uma pessoa. Nós, autistas, não somos apenas testemunhas extraordinárias ou gênios incompreendidos. Somos indivíduos que têm o direito de serem ouvidos sem que nossas habilidades sejam colocadas em teste.

Apesar de seus méritos cinematográficos e da tensão bem conduzida, Testemunha Inocente falha em oferecer uma verdadeira representação do autismo. O filme vale a pena ser visto, mas apenas como um ponto de partida para se refletir sobre o quanto ainda falta para que a representação autista seja mais do que mera ficção ou um ideal inatingível.


Ficha Técnica

  • Título Original: Testemunha Inocente (Innocent Witness)
  • Direção: Lee Han
  • Roteiro: Lee Han, Choi Jin-young
  • Elenco:
    • Jung Woo-sung como advogado de defesa
    • Kim Hyang-gi como Ji-Woo
    • Lee Kyu-hyung como o advogado da acusação
    • Kim Hee-ae como a ré
  • Gênero: Drama, Suspense, Judiciário
  • Duração: 118 minutos
  • Ano de Lançamento: 2019
  • País: Coreia do Sul
  • Distribuição: CJ Entertainment
  • Sinopse: O filme gira em torno do julgamento de uma cuidadora acusada de homicídio após a morte de um idoso. A única testemunha do caso é Ji-Woo, uma adolescente autista que presenciou o ocorrido. Enquanto o advogado de defesa tenta entender o que realmente aconteceu, ele enfrenta preconceitos e desafios ao lidar com o testemunho de Ji-Woo.

Temas Abordados

  • Preconceito contra pessoas autistas
  • Desafios do sistema judiciário
  • A importância da verdade e da voz de testemunhas

Recepção

O filme foi bem recebido por sua representação do autismo e a performance do elenco, embora tenha sido criticado por reforçar estereótipos.

banner-ousia-ebook-teologia-newsletter

Quer o meu livro "Teologia de Pé de Pequi"? Inscreva-se para receber conteúdo e ganhe o livro em PDF diretamente em seu e-mail

Não fazemos spam! Leia nossa política de privacidade para mais informações.

banner-ousia-ebook-teologia-newsletter

Quer o meu livro "Teologia de Pé de Pequi"? Inscreva-se para receber conteúdo e ganhe o livro em PDF diretamente em seu e-mail

Não fazemos spam! Leia nossa política de privacidade para mais informações.

Compartilhe
Paulo Freitas

Paulo Freitas

Paulo Freitas é teólogo, filósofo, professor e presbítero. Autista, escreve sobre fé, fragilidade, dor, neurodiversidade e tudo o que nos torna profundamente humanos.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

The owner of this website has made a commitment to accessibility and inclusion, please report any problems that you encounter using the contact form on this website. This site uses the WP ADA Compliance Check plugin to enhance accessibility.