Hiperfoco. Para muitos, um termo desconhecido; para mim, uma realidade constante e intensa. No mundo do autismo, o hiperfoco é um estado de concentração profunda em um assunto específico, a ponto de quase nada mais importar. É como se um túnel de dedicação se abrisse, levando-nos a explorar cada detalhe, a desvendar cada mistério, a buscar a perfeição em algo que, por um tempo, se torna o centro do nosso universo.
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Desde criança, os hiperfocos têm sido meus companheiros mais fiéis e, ao mesmo tempo, os mais cruéis. Alguns me acompanharam por anos, outros eu roguei a Deus que os deixasse para trás. Mas há aqueles que se incrustaram tão profundamente em meu ser que se tornaram parte de mim, trazendo não apenas satisfação e alegria, mas também um senso de identidade.
Quando um hiperfoco toma conta, é como um renascimento. As horas voam, o mundo ao redor desaparece, e só existe o prazer puro e intenso de aprender, de fazer, de ser. É uma dança entre a mente e o coração, onde cada passo é marcado pela excitação de descobrir algo novo ou de dominar uma habilidade. É um amor profundo, um compromisso com algo que nos define naquele momento.
Porém, quando esse estado de hiperfoco passa, o vazio que fica é indescritível. É como se uma parte de nós fosse arrancada, deixando um buraco que não pode ser preenchido. As memórias boas não trazem conforto, apenas uma saudade dolorosa. As habilidades que tanto batalhamos para adquirir perdem o sentido, tornando-se irrelevantes. Aquilo que antes era vital se torna um eco distante.
Para as pessoas típicas, esses interesses que se esvaem são apenas boas lembranças, fases que passaram com o tempo. Para nós, são perdas sentidas no âmago do ser. É como se um amigo querido desaparecesse sem aviso, levando consigo um pedaço da nossa alma. A alegria da descoberta e do domínio se transforma em uma tristeza profunda, uma angústia que muitas vezes beira o depressivo.
Olho para trás e vejo as inúmeras coisas que eram importantes, tanto para mim quanto para aqueles ao meu redor, evaporarem sem deixar rastro. Projetos, hobbies, habilidades que um dia foram meu mundo, agora são apenas lembranças vagas, se é que restou alguma. A transição é abrupta, cruel, sem piedade. De um momento para o outro, aquilo que fazia meu coração bater mais forte simplesmente não importa mais.
O hiperfoco, com toda a sua intensidade, é uma faca de dois gumes. Traz alegria, sim, mas também um desgaste emocional profundo quando se vai. É um ciclo de construção e destruição, de ganho e perda, de amor e luto. E, no final, tudo o que resta é a angustiante leveza do vazio, a busca incessante por algo novo que preencha o espaço deixado para trás.
Mas, mesmo assim, continuo vivendo, esperando pelo próximo hiperfoco, pela próxima paixão que me faça sentir vivo novamente, mesmo sabendo que, um dia, também ela irá embora, deixando-me com o mesmo vazio de sempre.
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Casado com Janaína e pai do Ulisses. Tutor da Zaira (Chow-Chow) e do Paçoca (hamster). Escritor por hiperfoco e autista de nascença. Membro e presbítero da Igreja REMIDI e missionário pelo PRONASCE. Teólogo, Filósofo e Pedagogo em formação. Especialista em Docência do Ensino Superior e em Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva. Meus autores preferidos são: Agostinho, Kierkegaard, João Wesley, Karl Barth, Bonhoeffer, Tillich, C. S. Lewis, Stott e alguns pais da igreja. Meus hobbys são: ler, assistir filmes e séries.