
A Greve dos Idosos: Uma Sátira Fatídica e Inevitável
Durante décadas, as greves dominaram o cenário social como um método legítimo e barulhento de resistência. Operários pararam fábricas, professores largaram o giz, caminhoneiros trancaram as estradas, artistas cruzaram os braços em silêncio performático. Até mesmo as crianças aprenderam a arte da resistência precoce ao se negarem a ir à escola, protestando contra merendas ruins e provas de matemática. Mães cansadas fizeram greve de afazeres domésticos; pais exauridos decretaram luto à paternidade ativa por um fim de semana. Tudo isso com cartazes, hashtags, panelas batendo e o sempre útil “não sairemos daqui até que…”.
Mas havia uma classe invisível, esquecida no meio da balbúrdia de demandas: os idosos.
— Greve dos idosos? — riam os jovens gestores de redes sociais. — Eles vão parar de fazer o quê? De andar devagar? De comentar a novela no ponto de ônibus? De esquecer a senha do celular?
O problema é que ninguém esperava que eles realmente fossem parar. Parar mesmo.
Não pararam de consumir — porque quem precisa parar de comprar remédio simplesmente… para, no sentido literal. Também não deixaram de votar — porque o transporte até a urna já era difícil mesmo. Não abandonaram o trabalho — porque já estavam fora do mercado há tempos, dispensados em nome da “eficiência” e do “perfil dinâmico”. Não largaram a faculdade — porque ninguém os convida a pensar. O que os idosos fizeram foi algo muito mais cruel. Entraram em greve de transmitir. Greve de contar. Greve de ensinar. Greve de recordar.
E o mundo não ouviu o estopim dessa paralisação silenciosa.
Ela começou quando o velho Cipriano, lá do interior de Minas, parou de se sentar na calçada pra falar da guerra que nunca combateu, mas que tanto estudou. Dona Jandira deixou de ensinar as crianças a bordar os nomes no pano de prato — “pra quê, se tem bordado eletrônico?”. O senhor Alencar, que sempre corrigia a gramática dos netos, deixou que falassem “menas” e “pra mim fazer” sem levantar a sobrancelha.
Nos lares de aposentados, as rádios de pilha ainda tocavam canções antigas, mas ninguém mais explicava quem era Lupicínio. Nos bancos das praças, o jogo de damas ficou em silêncio — não havia mais quem ensinasse as jogadas da vida. Os que sempre contavam “no meu tempo…” passaram a responder apenas com um encolher de ombros. Um silêncio pesado e coletivo tomou conta das bibliotecas humanas.
É que um dia eles perceberam: ninguém mais estava ouvindo.
O mundo dos jovens é digital, veloz e ansioso. É Google, é ChatGPT, é tutorial de cinco minutos para fazer o que levava uma vida para aprender. A sabedoria, antes passada em roda de fogueira, virou item opcional. A paciência dos anciãos tornou-se sinônimo de lerdeza. Suas memórias, tratadas como rabugices. Suas histórias, como exageros. Seu amor, como carência.
E foi aí que a greve se espalhou como uma epidemia silenciosa: uma recusa generalizada em ensinar o que não é valorizado.
Nenhuma faixa foi estendida. Nenhuma petição protocolada. Nenhuma passeata. Apenas silêncio. Uma greve sem alarde, mas implacável.
A sociedade, orgulhosa de sua juventude, não percebeu os efeitos imediatos. Continuou correndo, programando, inovando, destruindo, reconstruindo. Mas aos poucos, os sinais surgiram: os jovens começaram a tropeçar nos erros que os mais velhos conheciam bem. Não sabiam fazer curativos sem Google, nem resolver conflitos familiares, nem lembrar como era viver sem Wi-Fi. Faltava perspectiva. Faltava ancestralidade. Faltava chão.
As crianças já não sabiam cantar cantigas. Os adultos repetiam os mesmos erros políticos de gerações passadas. E os jovens… ah, os jovens! Perderam a curiosidade sobre o que havia antes do Instagram.
A greve dos idosos não levou às ruas caos logístico, mas instaurou uma anarquia temporal: o futuro sem passado é uma repetição tola. Os anciãos, isolados e calados, observavam. Não com vingança, mas com uma tristeza digna de profeta. Não desejaram o castigo, mas aceitaram a sentença.
— Eles não nos ouvem — dizia Dona Maria de Lourdes, olhando pela janela do asilo —, então que aprendam do pior jeito: sozinhos.
E assim, a pedagogia da velhice foi encerrada. Não por rancor. Por exaustão. Era como se tivessem passado tempo demais tentando dizer algo que ninguém mais queria ouvir.
As gerações futuras olharão para trás e encontrarão apenas um eco vazio onde antes havia uma trilha de sabedoria. E, um dia, esses mesmos jovens, agora com cabelos brancos, tentarão romper o silêncio para ensinar — mas perceberão que já é tarde. Eles também estarão em greve. Uma greve que começou muito antes, quando ainda eram jovens demais para entender que desprezar os mais velhos era cavar a própria solidão futura.
E assim, quando todos forem velhos, o mundo estará em greve total. Um silêncio ensurdecedor reinará nas praças, nos lares, nas histórias e nas almas. Não haverá mais quem conte. Não haverá mais quem ouça.
Afinal, como ensina o provérbio que ninguém mais repete:
“Quando um velho morre, é como se uma biblioteca inteira pegasse fogo.”
Mas agora, por escolha…
Eles mesmos fecharam as portas.
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