
Humor Sem Freios: O Stand-up e a Parede da Lei
O recente caso do humorista “Léo Lins”, condenado a mais de oito anos de prisão por declarações feitas em seus shows de stand-up comedy, reabriu um debate delicado, mas urgente: existem limites para o humor? Estaria a arte do riso acima da lei ou submetida a ela como qualquer outro discurso público? Defensores de uma liberdade de expressão absoluta sustentam que o humor deveria ser livre para provocar, chocar e satirizar. No entanto, quando se ultrapassa o campo da provocação e se entra na seara da humilhação, do preconceito e da incitação ao ódio, o que realmente importa é a legislação — e seus limites são claros.
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Em seu espetáculo intitulado Perturbador, Léo Lins faz jus ao nome. As falas que viralizaram nas redes sociais ultrapassam os limites da ironia e adentram o terreno da crueldade. Uma das piadas citadas no processo dizia: “contratei intérprete só pra ofender surdo-mudo”. Em outra, referindo-se a uma criança com hidrocefalia, afirma que “o bom é que o único lugar com água é na cabeça dele”. Também ironiza a escravidão com a seguinte fala: “negro já nascia empregado, já achava ruim na escravidão”. As piadas não param por aí: indígenas, pessoas com HIV, gordos, judeus, idosos, pessoas com deficiência, homossexuais e crianças vítimas de abuso também foram alvos. A estrutura de seu show parecia, mais do que um roteiro humorístico, uma cartilha de violência simbólica.
A Justiça entendeu que não se tratava apenas de humor. As acusações envolveram crimes previstos na legislação brasileira: incitação ao racismo, apologia a crimes, discriminação contra pessoas com deficiência e discurso de ódio. Léo Lins foi condenado com base na Lei 7.716/1989, que trata dos crimes de racismo — os quais, segundo a Constituição, são inafiançáveis e imprescritíveis — e também com base no artigo 140, §3º, do Código Penal, que trata da injúria com caráter discriminatório. A juíza responsável pelo caso foi enfática: a liberdade de expressão, embora garantida pela Constituição, não se sobrepõe ao princípio da dignidade humana, também constitucionalmente assegurado no artigo 5º, inciso X. Além disso, o Estatuto da Pessoa com Deficiência e o Estatuto da Criança e do Adolescente foram evocados como marcos legais violados.
Entender o que é stand-up comedy ajuda a dimensionar a controvérsia. Esse gênero se caracteriza pela apresentação solo, geralmente com textos autorais e uma estética de espontaneidade. Um dos princípios do stand-up é justamente a proximidade entre o artista e o público: o comediante não interpreta um personagem distante, mas ele mesmo, com suas opiniões, experiências e observações. A ideia de “falar verdades” de maneira engraçada é constitutiva do formato. Por isso, quando Léo Lins tenta se defender dizendo que “era só um personagem”, sua argumentação se revela contraditória. O personagem no stand-up é apenas uma extensão da própria pessoa, e suas palavras são recebidas como suas — especialmente quando elas não se escondem sob o véu da ficção, mas assumem a forma de “verdades inconvenientes”.
É nesse ponto que o humor de Léo Lins colide com a ética, a estética e a legalidade. Humor pode — e deve — ser crítico, ácido, provocador. Mas não pode ser escudo para a propagação do preconceito. Como afirmou Dario Fo, Prêmio Nobel de Literatura e um dos maiores mestres do teatro cômico, o riso é uma arma poderosa contra o poder. O riso, nesse sentido, não deve oprimir os já oprimidos, mas servir como ferramenta de denúncia contra estruturas injustas. Henri Bergson, em seu clássico O Riso, acrescenta outra dimensão importante: para ele, o riso tem uma função social corretiva — é um mecanismo coletivo de regulação de condutas, um modo civilizado de apontar incoerências ou desvios sem recorrer à violência. Quando o riso, ao contrário, humilha, desumaniza e fere, ele perde sua função reguladora e passa a ser uma ferramenta de dominação.
Luis Fernando Veríssimo, com sua precisão poética, sintetizou o papel ético do humor ao afirmar que humor é a maneira mais civilizada de dizer verdades. No entanto, há uma linha tênue entre a verdade crítica e o deboche gratuito. Piadas que atacam minorias — pessoas que historicamente são vítimas de marginalização — não revelam verdades, apenas reforçam estigmas. No caso de Léo Lins, o que há é um humor que se alimenta do sofrimento alheio como combustível, tentando disfarçar violência de sátira.
Do ponto de vista teológico e moral, o discurso de ódio, mesmo travestido de piada, não encontra respaldo. O apóstolo Paulo adverte aos efésios: “evitem conversas tolas, obscenas ou levianas, que não convêm; antes, deem graças” (Ef 5:4). Ele também orienta os cristãos a que sua fala seja sempre “temperada com sal”, ou seja, com discernimento, graça e respeito (Cl 4:6). A liberdade cristã é sempre mediada pelo amor ao próximo. Em 1 Coríntios 10:23, Paulo diz: “Tudo me é permitido”, mas completa: “nem tudo convém”. A liberdade de expressão, para o cristão, nunca pode ser um álibi para o desprezo, mas um instrumento de edificação.
É fundamental reconhecer que a arte do humor tem um papel central na crítica social. Não se trata aqui de cercear o riso, mas de lembrar que a liberdade de expressão, como qualquer outro direito, encontra seus limites quando atinge a dignidade de outra pessoa. Não existe liberdade artística absoluta. O próprio Supremo Tribunal Federal já reiterou que manifestações artísticas que configuram crimes, como racismo e apologia à violência, não estão protegidas pelo manto da liberdade de expressão.
Portanto, o caso Léo Lins é um marco importante. Ele não representa uma censura ao humor, mas uma resposta à sua perversão. Que esse episódio sirva como reflexão sobre o papel do humor na sociedade. Que possamos rir, sim — rir da injustiça, da corrupção, da hipocrisia. Mas nunca rir às custas do sofrimento do outro. O riso, quando se torna arma contra os frágeis, não é riso: é opressão disfarçada de entretenimento. A arte do humor verdadeiro é aquela que nos desafia sem nos desumanizar, que nos provoca sem nos ferir, que nos transforma sem nos destruir.
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