A imagem mostra o interior de uma igreja vista a partir do púlpito. Em primeiro plano, há uma Bíblia aberta sobre um suporte de madeira bem iluminado por uma luminária. Ao fundo, a congregação está reunida e atenta, sentada nos bancos da igreja. Entre os fiéis, destaca-se uma pessoa em uma cadeira de rodas posicionada no centro do corredor, em evidência, como parte da comunidade. A arquitetura é clássica, com colunas de pedra e vitrais coloridos, transmitindo um ambiente solene e reverente.
Teologia da Deficiência

Igreja, Deficiência e o Grito Silenciado – 2

Parte 2 – O lugar da presença: entre acessibilidade e espiritualidade

Se a primeira parte deste estudo foi um grito contra uma teologia disfarçadamente capacitista, esta segunda parte é um apelo mais prático, porém não menos profundo. Aqui, a pergunta muda de foco: ela sai do campo da teologia abstrata e entra no chão da igreja local. Ela nos empurra para o campo da arquitetura, da liturgia, da cultura comunitária. E se queremos ser sinceros com o Cristo encarnado, precisamos encarnar também a escuta e a acessibilidade. As perguntas agora são:

  1. A estrutura física da igreja é acessível ou a acessibilidade é pensada apenas depois que alguém com deficiência aparece?
  2. Os ministérios da igreja são moldados para incluir todos, ou exigem um padrão de desempenho que exclui pessoas com deficiência?
  3. O que aprendemos sobre Deus através da vivência de fé de pessoas com deficiência? Estamos abertos a isso?

Leia também: Igreja, Deficiência e o Grito Silenciado – 1

I. A arquitetura da exclusão

Vivemos em tempos em que igrejas investem pequenas fortunas em equipamentos de som, painéis de LED, palcos modernos e estruturas altamente tecnológicas. Mas muitas dessas mesmas igrejas ainda não têm uma rampa de acesso adequada, um banheiro adaptado, um intérprete de Libras, uma sinalização tátil para cegos, ou sequer assentos reservados para pessoas com mobilidade reduzida. Isso não é um problema de engenharia — é um problema de espiritualidade encarnada.

Jesus, em sua vida terrena, nunca separou corpo e espírito. Ele curava o corpo, mas também restaurava a dignidade. Ele tocava com as mãos o que os religiosos só queriam tratar com palavras. Em outras palavras, Jesus era acessível — fisicamente, espiritualmente, socialmente.

Quando uma igreja espera “aparecer alguém com deficiência” para pensar em acessibilidade, ela revela sua lógica reativa e não encarnacional.
Ela diz, sem palavras: “vocês não são esperados aqui.”
E quando fazem adaptações mínimas apenas para cumprir exigências legais ou para “não dar problema”, estão operando não por amor, mas por medo de processos. Acessibilidade, nesse caso, se torna um capricho jurídico, e não uma expressão do Reino.

Mas o Reino que Jesus anunciou não começa com leis — começa com amor. Começa com o reconhecimento de que a igreja deve ser um lugar onde qualquer corpo possa habitar com dignidade e segurança. Se não for assim, deixamos de ser corpo de Cristo e viramos clube de membros saudáveis.

II. Ministérios para quem? A lógica da performance

A exclusão de pessoas com deficiência muitas vezes não se dá na porta da igreja, mas no palco. O modelo de ministério vigente é, frequentemente, um modelo de desempenho. Para ser ministro do louvor, espera-se uma voz afinada. Para ser pregador, uma retórica eloquente. Para ser professor, domínio técnico. Para liderar, presença constante e intensa.
Mas e quem vive com dor crônica? E quem não consegue falar com fluência? E quem precisa de pausas frequentes, ou de apoio para interpretar o ambiente?

A resposta, muitas vezes, é o silêncio. Ou a piedosa desculpa: “Quem sabe um dia Deus cura e aí você pode servir.”

Mas aqui me coloco de novo como corpo, como alma, como história. Eu, que vivo com limitações, cansaços, hipersensibilidades. Eu, que sou autista, que já fui ignorado, mal interpretado, visto como complicado demais, frágil demais, limitado demais.
E me lembro que os critérios de Jesus para o ministério nunca foram os da performance, mas os da entrega.
Pedro era impulsivo. João era temperamental. Moisés era gago. Paulo tinha um espinho na carne. E Jesus? Ele escolheu morrer vulnerável, frágil, sem poder aparente. O poder que sustenta o Reino vem da fraqueza oferecida, não da força exibida.

Igrejas que baseiam seus ministérios em talentos mensuráveis, disponibilidade rígida ou padrões estéticos de liderança não apenas excluem pessoas com deficiência — elas excluem o próprio Cristo crucificado como modelo.

III. O discipulado reverso: aprender com os que sofrem

Essa pergunta — “O que aprendemos sobre Deus com as pessoas com deficiência?” — deveria ser o ponto de partida de toda igreja que deseja ser discipular, missionária e encarnacional.
Mas raramente é feita. Porque temos medo de sermos ensinados por quem julgamos frágeis.
Nos acostumamos com o modelo piramidal: os fortes ensinam, os sábios aconselham, os saudáveis lideram.
Mas o Reino de Deus é redondo. É comunhão, não pirâmide.

As pessoas com deficiência carregam revelações que os corpos acelerados da nossa época não conseguem captar.
Elas conhecem o tempo do cansaço, o valor do toque, o poder do olhar. Elas sabem que a fé não é um desempenho, mas uma confiança radical. Elas conhecem o desamparo e, por isso, entendem melhor a graça.
Há uma mística da dor, uma espiritualidade do silêncio, uma teologia da limitação que não pode ser ensinada em seminários — só pode ser vivida. E talvez as vozes mais teológicas da nossa geração estejam nos corpos que a igreja insiste em não ouvir.

Falar sobre deficiência não é falar sobre eles — é falar sobre nós. Sobre como estamos perdendo a chance de ver Deus em formas que ainda não reconhecemos como sagradas.

Conclusão

Se na parte anterior desafiamos nossa teologia, aqui desafiamos nossa estrutura, nossa cultura, nossos critérios.
Acessibilidade não é caridade. Inclusão não é favor. Ou somos corpo com todos os membros ou não somos corpo nenhum.

A igreja não é plena enquanto os seus espaços não puderem ser habitados por todos. Não é santa enquanto mede valor por produtividade. Não é apostólica enquanto ignora os dons escondidos na fragilidade. Não é cristã enquanto não reconhece o Cristo nas mãos que tremem, nos olhos que não veem, nos corpos que não correm.

E se a nossa espiritualidade não for capaz de conviver com a deficiência, então ela é uma espiritualidade deficiente.

Views: 20

Casado com Janaína e pai do Ulisses. Tutor da Zaira (Chow-Chow) e do Paçoca (hamster). Escritor por hiperfoco e autista de nascença. Membro e presbítero da Igreja REMIDI e missionário pelo PRONASCE. Teólogo, Filósofo e Pedagogo em formação. Especialista em Docência do Ensino Superior e em Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva. Meus autores preferidos são: Agostinho, Kierkegaard, João Wesley, Karl Barth, Bonhoeffer, Tillich, C. S. Lewis, Stott e alguns pais da igreja. Meus hobbys são: ler, assistir filmes e séries.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *