A imagem retrata o interior de uma igreja iluminada pela luz suave do sol que atravessa os vitrais coloridos ao fundo. No centro da cena, em primeiro plano, há uma mulher idosa em uma cadeira de rodas, observando o altar. Ela está de costas, com os cabelos grisalhos iluminados pela luz que entra pelas janelas. À sua frente, os demais fiéis estão em pé, participando do culto ou momento de oração. O ambiente transmite um clima de reverência, espiritualidade e contemplação. O contraste entre a posição sentada da mulher e a postura ereta dos demais fiéis pode simbolizar tanto a diversidade das formas de adoração quanto uma reflexão sobre inclusão e acolhimento na vivência comunitária da fé.
Teologia da Deficiência

Igreja, Deficiência e o Grito Silenciado – 3

Parte 3 – Silêncios cúmplices, discipulados rasos e o corpo invisível

Se as primeiras duas partes trataram da teologia e da estrutura, essa terceira se volta à práxis discipular e pastoral. São perguntas desconcertantes porque nos expõem não só como igreja, mas como discípulos. Elas nos fazem olhar no espelho e nos perguntam: que tipo de corpo é esse que chamamos de Corpo de Cristo, mas que vive ignorando partes feridas, silenciadas, não desenvolvidas? Eis as perguntas:

  1. A igreja se cala quando vê injustiças contra pessoas com deficiência, ou se posiciona com profecia e coragem?
  2. A formação discipular leva em conta as especificidades cognitivas, emocionais e físicas das pessoas com deficiência?
  3. A comunidade reconhece o valor dos dons e da presença das pessoas com deficiência, ou ainda as trata apenas como alvo de compaixão?

Leia também: Igreja, Deficiência e o Grito Silenciado – 2

I. O silêncio cúmplice: quando a omissão se torna pecado

Poucas igrejas têm coragem de ser proféticas quando o assunto é deficiência. A maioria prefere o silêncio conveniente — aquele que disfarça exclusão com orações genéricas.
Mas o silêncio diante da injustiça é mais que omissão: é cumplicidade.

Quantas vezes líderes evangélicos se levantam contra corrupção política ou perseguição religiosa (com razão), mas ignoram completamente leis mal cumpridas, escolas que não aceitam crianças com deficiência, igrejas que se recusam a adaptar espaços ou que excluem silenciosamente líderes neurodivergentes ou com limitações físicas?

A Bíblia não silencia diante da injustiça. Os profetas, os salmos, os evangelhos e as cartas apostólicas gritam por justiça, equidade, acolhimento.
O próprio Jesus não apenas curou, mas se indignou. Ele não apenas viu, ele tocou. Ele não apenas falou, ele chorou.

Uma igreja que não denuncia o abandono de crianças com deficiência, a ausência de políticas inclusivas, a segregação educacional, o capacitismo velado nas falas religiosas e o desprezo institucional… essa igreja não é de Jesus.
Ela pode até carregar o nome de Cristo na fachada, mas dentro cultua um ídolo: o ídolo do conforto e do conformismo.

II. Discipulado sob medida: espiritualidade não é padronização

Há uma ilusão perigosa em muitas igrejas: a de que basta ensinar “o básico da fé” e todos se adaptarão. O discipulado, nesse modelo, é um molde rígido — uma cartilha uniforme. Mas esse modelo revela uma pobreza pedagógica e uma cegueira pastoral.

Jesus discipulava de maneira personalizada. Com Nicodemos, foi racional. Com a mulher samaritana, relacional. Com Pedro, confrontador. Com Tomé, acolhedor. Com os doentes e marginalizados, paciente e presente.

E nós? Quantos dos nossos cursos de discipulado são acessíveis para autistas? Quantos livros evangelísticos estão em braile, audiolivro ou linguagem simplificada? Quantos líderes sabem adaptar o conteúdo para alguém com dislexia, com deficiência intelectual leve, ou com transtornos de aprendizagem?

Mais que acessibilidade física, precisamos de acessibilidade pedagógica, relacional, emocional, espiritual.
A fé não é um bloco de cimento — é um organismo vivo que pode (e deve) se encarnar de forma contextual.

Discipular alguém com deficiência não é “perder tempo com alguém difícil”.
É reconhecer que cada pessoa carrega em si uma imagem de Deus que exige escuta, adaptação e humildade.

III. De alvo a agente: dons não são piedade, são potência

Talvez uma das mais dolorosas realidades da igreja seja essa: pessoas com deficiência são vistas como alvo de compaixão, mas raramente como fonte de contribuição.
Elas recebem orações, abraços, às vezes ofertas — mas quase nunca recebem espaço, autoridade, escuta.

É o velho paradigma da caridade — “fazer o bem ao pobrezinho” — e não o paradigma do Reino — “há um lugar na mesa para todos, e todos têm algo a compartilhar.”

Os dons do Espírito Santo não seguem o modelo da meritocracia nem da eficiência.
Eles seguem o modelo da graça e da edificação mútua. Quando ignoramos ou subestimamos os dons das pessoas com deficiência, não estamos apenas cometendo injustiça contra elas — estamos empobrecendo o corpo inteiro.

Já estive em reuniões onde a sensibilidade de um irmão com deficiência intelectual desarmou os conflitos que a sabedoria dos “maduros” não resolveu.
Já vi pessoas autistas perceberem nuances da Bíblia que outros ignoravam por causa da pressa.
Já ouvi testemunhos de quem vive com dor crônica que sustentam a fé de uma igreja inteira.
Essas pessoas não estão no corpo para serem “curadas” ou “consoladas” apenas — estão para servir, para profetizar, para ensinar, para ser sal e luz com suas próprias linguagens.

Conclusão

O maior pecado da igreja não é ignorar os deficientes. É tratá-los como exceções. Como adendos. Como notas de rodapé da história principal.

Mas no Reino de Deus, os últimos são os primeiros. Os fracos são os fortes. Os corpos marcados são os lugares onde Cristo mais gosta de aparecer.

Enquanto continuarmos vendo pessoas com deficiência como um “fardo pastoral”, não compreenderemos a beleza radical do evangelho.
Porque o evangelho não é sobre quem consegue subir no púlpito — é sobre quem se dispõe a carregar a cruz.

E talvez, só talvez, se ouvirmos com atenção, descobriremos que Deus tem falado com mais nitidez por bocas que o mundo tentou silenciar.

Views: 3

Casado com Janaína e pai do Ulisses. Tutor da Zaira (Chow-Chow) e do Paçoca (hamster). Escritor por hiperfoco e autista de nascença. Membro e presbítero da Igreja REMIDI e missionário pelo PRONASCE. Teólogo, Filósofo e Pedagogo em formação. Especialista em Docência do Ensino Superior e em Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva. Meus autores preferidos são: Agostinho, Kierkegaard, João Wesley, Karl Barth, Bonhoeffer, Tillich, C. S. Lewis, Stott e alguns pais da igreja. Meus hobbys são: ler, assistir filmes e séries.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *