
Igreja, Deficiência e o Grito Silenciado – Final 2
Parte Final 2 – O Pecado do Capacitismo no Púlpito
A dor de quem vive com uma deficiência, ou de quem cuida com amor e sacrifício de alguém com transtornos mentais ou físicos, não deveria encontrar eco em palavras de condenação, suspeita ou desprezo nos púlpitos. Mas encontra. Repetidas vezes. Em igrejas lotadas, em lives vistas por milhões, em canais de YouTube com dezenas de milhares de seguidores. O grito de quem sofre é silenciado por vozes que deveriam proclamar cura, acolhimento e verdade. Essa realidade dolorosa nos obriga a fazer uma análise dura, crítica, teológica e profética: a Igreja brasileira precisa romper com o pecado do capacitismo.
Decidi escrever esta nova parte da minha série de artigos Igreja, Deficiência e o Grito Silenciado após receber algumas poucas críticas de que o texto anterior soava duro e até generalizante. Se, em algum momento, essa impressão foi causada, peço perdão — não era, em hipótese alguma, minha intenção.
No entanto, também recebi muitos elogios de pessoas que entenderam a urgência e a necessidade de a igreja refletir com seriedade sobre sua postura em relação às pessoas com deficiência. Por isso, esta segunda parte tem como propósito expor casos concretos, reais, de líderes religiosos que, diante de grandes plateias, ultrapassaram os limites do bom senso e proferiram palavras que doem profundamente em nós — pessoas com deficiência e nossos familiares. Palavras que não apenas ferem, mas que precisam ser reconhecidas como parte de um problema estrutural e silenciado na espiritualidade cristã contemporânea.
Leia também: Igreja, Deficiência e o Grito Silenciado – Final
Nos Estados Unidos, onde o evangelicalismo molda boa parte da opinião pública cristã, não faltam exemplos infelizes:
John MacArthur, um dos mais influentes pastores reformados do mundo, declarou em 2008 que o Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) não passa de uma desculpa moderna para comportamentos pecaminosos: “Essas crianças estão sendo ensinadas que elas têm uma desordem quando na verdade estão apenas se rebelando contra a autoridade”.
“Não existe TEPT. Não existe TOC. Não existe TDAH. Essas são mentiras nobres para basicamente dar a desculpa, no final das contas, para medicar as pessoas. E a Big Pharma é responsável por muito disso”. Palavras como essas deslegitimam diagnósticos sérios, desrespeitam famílias inteiras e colocam a culpa do sofrimento sobre os ombros dos mais vulneráveis1.
Greg Locke, pastor fundamentalista (Global Vision Bible Church, Tennessee) criticou a acessibilidade para deficientes em sua igreja, dizendo: “por que… vocês têm cinquenta vagas de estacionamento para deficientes físicos?” Em seguida ele sugeriu trocar o símbolo de acesso por uma cadeira de rodas tombada e provocou a plateia: “eu acho que vocês só não têm fé”, insinuando que a falta de cura se deve à fé insuficiente dos fiéis2.
Em um sermão sobre desprendimento demoníaco, Locke afirmou que crianças autistas “não têm uma condição médica… mas em vez disso são demonizadas”. Em outras palavras, sugeriu que o autismo seria obra demoníaca e não um transtorno real3.
James Dobson, líder da organização “Focus on the Family”, declarou certa vez que a disciplina é a solução para quase todo TDAH, sugerindo que falta de vara é o que gera comportamentos disruptivos em crianças com transtornos do neurodesenvolvimento4.
Matt Baker, pastor líder da Trinity Christian Academy (escola cristã em Lake Worth, Flórida), escreveu em e-mail institucional que uma “Semana de Conscientização sobre o Autismo” era idolátrica e “demoníaca”. Em carta aos pais, ele afirmou que “qualquer programa que ensine nossas crianças que sua identidade está em qualquer coisa que não seja Cristo é idolatria e demoníaco”. Na prática, Baker cancelou eventos de conscientização do autismo na escola, argumentando que exaltem coisas “além de Cristo”. Essa declaração foi amplamente criticada por reduzir o autismo a algo “demoníaco” e subvalorizar pessoas autistas5.
O pastor Rick Morrow (Beulah Church, Richland, Missouri) afirmou publicamente que crianças autistas são “oprimidas por demônios”. Em um culto de “libertação espiritual”, Morrow disse: “Bem, [se não for demoníaco,] então temos que dizer que Deus as fez desse jeito… Bem, meu Deus não faz lixo”. Em outras palavras, ele sugeriu que o autismo ou provém de demônios ou seria algo criado por Deus (como castigo ou propósito), chegando a chamar as crianças afetadas de “lixo” de forma metafórica. A fala gerou revolta na comunidade e levou à sua renúncia de um cargo público local6.
Essas palavras são lancinantes. Elas não apenas ferem a dignidade de milhões de pessoas com deficiência, mas desfiguram o rosto do Cristo que não se afastava dos fracos, mas os tomava nos braços. Um Jesus que tocava leprosos, ouvia cegos, comia com paralíticos e reconhecia no surdo-mudo a imagem de Deus.
No Brasil, o problema não é menor.
Em 2024, Pastor Pio Carvalho, da Comunhão Cristã Abba (PR), disse a uma professora que trabalha com autistas: “Isso não existe”, e que se tratava de um “espírito maligno” a ser expulso com óleo e oração. Essa declaração, feita publicamente durante uma pregação em Itapeva (SP), viralizou e causou revolta, levando o Partido dos Trabalhadores a emitir nota de repúdio. O caso foi noticiado pelo UOL, Folha e outros portais. A fé de milhares de famílias com crianças autistas foi agredida com essas palavras7.
Poucos meses antes, o pastor Washington Almeida, da Assembleia de Deus em Tucuruí (PA), havia dito que o diabo estava “visitando o ventre das desprotegidas”, e que por isso tantas crianças estavam nascendo com autismo. Isso foi dito em pleno culto, diante de dezenas de membros, e foi divulgado em vídeo. Após grande repercussão e nota de repúdio de sua própria denominação, ele pediu desculpas. Mas o estrago estava feito8.
Não se trata de casos isolados. A Igreja Universal do Reino de Deus foi condenada judicialmente em 2008 por coagir um fiel com deficiência mental a doar seus rendimentos e fazer “prova de fé”. O tribunal determinou que a igreja havia se aproveitado da vulnerabilidade do rapaz9.
Essas declarações não apenas são moralmente erradas: elas violam o Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei Brasileira de Inclusão – Lei 13.146/2015), que proíbe toda forma de discriminação baseada em deficiência, inclusive no ambiente religioso. Associar autismo a possessão demoníaca é, além de ignorância médica, um crime.
O capacitismo religioso é ainda mais perverso porque se traveste de espiritualidade. Usa a linguagem da fé para atribuir culpa à vítima, para castigar a família, para isolar ainda mais quem já sofre. E mais: impede o acesso dessas pessoas aos sacramentos, à comunhão, ao ministério, à convivência comunitária. Quando o corpo de Cristo rechaça seus membros mais vulneráveis, ele se torna menos corpo e mais clube.
Filosoficamente, o capacitismo cristão está enraizado numa idolatria da força, do desempenho, da sanidade e da utilidade. Ele esquece que Deus se revela na fraqueza (2Co 12.9), que Jesus se fez servo e que o Reino é dado aos pobres de espírito. A deficiência não é pecado. Não é maldição. É condição humana. É existência real, amada por Deus e portadora de dignidade. O corpo que sofre é também corpo ressuscitado.
Teologicamente, devemos recuperar a imagem de um Deus que chama Moisés com dificuldades na fala, que unge Davi mesmo desprezado por sua família, que acolhe Zaqueu mesmo com limitações morais, que anda com Pedro apesar de sua instabilidade emocional. A graça não é meritocrática. O Evangelho é inclusão radical.
O que é duro, para quem escuta, não é a crítica feita por teólogos que denunciam tais falas. O que é duro é ser autista e ouvir que você é possesso. O que é lancinante é ser mãe e ouvir que sua filha é doente porque você não teve “graça suficiente”. O que atormenta a alma é ver a igreja aplaudir essas palavras.
Chegou a hora de denunciar esse pecado com coragem. De exigir que igrejas não apenas se retratem, mas promovam formação inclusiva, acolhimento real, liderança representativa. E de lembrar: não há corpo menos digno no corpo de Cristo. Não há mente menos amada no Céu. Não há deficiência que exclua da graça.
Quem fere um dos pequenos, fere o próprio Cristo. E Ele ainda está dizendo: “Deixai vir a mim os pequeninos”.
O que é Capacitismo?
Capacitismo: o que é, tipos, exemplos, legislação – Brasil Escola
- John MacArthur nega doença mental: ‘Não existe TEPT’ ↩︎
- MAGA-pastor reclama do estacionamento acessível na igreja – diz que a cadeira de rodas deve apenas andar ↩︎
- Um cristão autista responde a Greg Locke – Deeper Waters ↩︎
- Como disciplinar sem quebrar o espírito de uma criança ↩︎
- Escola particular cancela semana de autismo, pastor a chama de ‘demoníaca’ ↩︎
- Pastor Under Fire for Claiming Children With Autism Are Demon Oppressed: ‘If It’s Not Demonic, Then We Have To Say God Made Them That Way’ ↩︎
- Pastor diz que autismo não existe: ‘espírito maligno’ ↩︎
- Pastor diz que nascimento de crianças autistas seria o ‘diabo visitando ventre’ de mães; vídeo ↩︎
- Justiça obriga Igreja Universal a devolver dízimo a fiel – 23/08/2008 | Diário do Grande ABC ↩︎
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