
O Mistério de Uma Teologia que Sangra e Canta
A teologia, por vezes, é sequestrada por laboratórios sem vida. É arrancada da terra molhada pela lágrima do pobre, da calçada onde dorme o esquecido, do altar improvisado da casa de um fiel que ora em silêncio diante da dor. Arrancada, embalsamada e colocada em vitrines douradas de academias onde o verbo não se faz carne, mas papel, rodapé e nota de rodapé. Tornou-se, em muitos círculos, uma ciência dos fósseis, um estudo dos ossos de Deus, como se o Eterno pudesse ser arqueologicamente escavado e catalogado por categorias humanas.
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Mas a teologia verdadeira… ah, essa não cabe em tratados nem se aprisiona em dogmas frios. Ela não nasce do aplauso acadêmico, mas da angústia do coração que pergunta como Jó, que contesta como Habacuque, que chora como Jeremias, que canta como Maria, que ama como João. A teologia nasce quando o ser humano se debruça sobre a Escritura não como quem lê um manual, mas como quem se encontra com o Mistério.
A Bíblia não é um compêndio de doutrinas — é um campo de batalha onde fé e dúvida dançam uma dança antiga. É poesia e pólvora. É carne e espírito. É lamento e riso. É grito e silêncio. É história contada à beira do fogo, é canção entoada no exílio, é carta escrita entre correntes. A teologia, se for viva, precisa de tudo isso. Precisa ouvir os tambores africanos, os cânticos indígenas, os poemas místicos do deserto, os gritos urbanos dos becos, as lágrimas do corpo enfermo e o silêncio contemplativo dos monges.
O maior erro da teologia moderna talvez tenha sido acreditar que ela poderia compreender Deus. Como se o finito pudesse abraçar o Infinito com fórmulas, sistemas e nomenclaturas. Como se o Eterno pudesse ser estocado em bibliografias. Esqueceram-se de que toda teologia que se quer total é, no fundo, uma idolatria intelectual. E como todo ídolo, oferece a segurança do controle, mas jamais entrega a verdade da presença.
Deus não se deixa domesticar por nossas categorias. Ele é o que é — e isso é mais do que podemos suportar. Deus se revela, Deus se oculta, e Deus se revela na sua ocultação. A revelação não é um espelho, é um véu. O teólogo, se verdadeiro, é aquele que sabe que tateia no escuro como o cego de nascença, mas que, ao ouvir a voz do Filho, diz: “Creio, Senhor”. E adora.
A Bíblia é a gramática da fé, mas não é um dicionário de definições. É mais como um poema que canta enquanto quebra, que consola enquanto desconstrói. E quando é bem lida, não nos entrega uma fórmula, mas nos convida para a vida. A Palavra, quando ouvida com o coração, se torna carne no corpo do pobre que acolhemos, no inimigo que perdoamos, na criança que ensinamos, no pão que partilhamos. A teologia acontece ali — onde a vida acontece. No chão, no suor, no sangue. E no canto.
Não há tradição cristã que detenha o monopólio da verdade. Há sopros. Há ecos. Há lampejos. Mas não há prisão possível para o Verbo. O Verbo anda por onde quer. E Ele quer andar conosco — com dançarinos, lavradores, poetas, mães, órfãos, políticos, pensadores, loucos, autistas, excluídos, velhos, adolescentes, mártires e sobreviventes. É por isso que a verdadeira teologia é também política, cultura, história, arte e abraço. Ela não cabe no gabinete, ela se derrama na rua.
Se queremos fazer teologia, então que desçamos do púlpito frio das certezas absolutas e caminhemos pelo caminho poeirento da Galileia. Ali onde Deus, surpreendentemente, decidiu nascer. Ali onde Ele tocou o leproso, chorou com as irmãs de Lázaro, comeu com pecadores, discutiu com religiosos e morreu entre ladrões. Ali a teologia ganhou carne e ossos. E ali continua a viver, não como tratado, mas como testemunho.
Porque, no fim das contas, a melhor teologia ainda é a do Cordeiro calado diante do matadouro, e a do túmulo vazio que confunde os sábios. Porque nenhuma mente humana pode conter o Mistério. Mas todo coração quebrantado pode ser tocado por Ele.
A teologia, se quiser ser fiel ao Cristo, deve voltar a ser humana. Deve suar, deve sangrar, deve cantar. Deve morrer e ressuscitar com Ele, dia após dia. Não como ciência dos mortos, mas como arte dos vivos.
E é assim que ela floresce: não como sistema, mas como semente. Uma boa semente. E a boa semente sempre dá fruto. Mesmo que plantada no chão duro da vida. Mesmo que regada por lágrimas.
Mesmo que ninguém veja.
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