A imagem mostra uma Bíblia aberta sobre uma superfície escura, iluminada por um feixe de luz dourada que desce do alto, destacando suas páginas. Pequenas partículas luminosas flutuam dentro da luz, criando um efeito de aura ou reverência, simbolizando a presença e a revelação divina. O contraste entre a escuridão ao redor e o foco de luz na Bíblia sugere a ideia de conhecimento, verdade e espiritualidade que emanam da Palavra de Deus.
Artigo,  Teologia

O que Podemos Dizer Sobre Deus: Entre o Silêncio Humano e Sua Palavra

Vivemos cercados de discursos sobre Deus. São sermões, livros, canções, fóruns acadêmicos e até debates televisivos. Cada um apresenta um “Deus” a seu modo — ora austero, ora permissivo; ora distante, ora intimamente próximo. Mas, diante de tanta pluralidade de vozes, surge uma pergunta inevitável: o que realmente podemos dizer sobre Deus que seja verdadeiro?

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“Quem é este que obscurece o meu conselho com palavras sem conhecimento?” (Jó 38:2). Deus interrompeu Jó com essa pergunta, lembrando-lhe que nem mesmo o justo sofredor, com toda sua dor e sinceridade, estava apto a falar sobre o Criador sem antes ouvir o próprio Criador. Kierkegaard dizia que toda tentativa de ‘explicar Deus’ é como um cego descrevendo as cores — o resultado é sempre mais sobre o cego do que sobre as cores.

A primeira afirmação que precisa ser feita é desconfortável para o ego humano: ninguém pode dizer algo verdadeiro sobre Deus, a não ser aquilo que o próprio Deus tenha dito primeiro. Todas as nossas palavras sobre Ele, se não forem ancoradas na autorrevelação divina, correm o risco de se tornarem projeções de nossos desejos, medos e preconceitos.

Moisés ouviu a revelação mais ousada e ainda assim misteriosa: “Eu Sou o que Sou” (Êx 3:14). Não era uma definição, mas um limite: saber que Deus é, sem reduzir quem Ele é. Karl Barth insistia que o conhecimento de Deus é sempre um milagre da graça, pois não subimos até Ele — Ele desce até nós. Toda tentativa humana de “acrescentar” ao que Ele disse é uma escada que não toca o céu.

Essa limitação não é um capricho teológico, mas uma realidade ontológica e epistemológica. Ontológica, porque Deus é o Ser absoluto, infinito e transcendente, enquanto nós somos criaturas finitas, limitadas e marcadas pela imperfeição. Epistemológica, porque nossa capacidade de conhecer é condicionada por nossa natureza e história — e, no caso humano, por nossa queda. Sem que Deus se comunique, nosso conhecimento sobre Ele permaneceria fechado em trevas.

Por isso, qualquer caracterização religiosa, filosófica ou até mesmo teológica que não encontre seu fundamento na Palavra de Deus não passa de mera especulação. É aqui que muitos erram: criam um deus que confirma seus interesses, legitima suas políticas e santifica suas paixões.

Este não é o Deus das Escrituras, mas o bezerro de ouro esculpido com as palavras certas e a aparência de piedade. Nietzsche ironizou dizendo que “Deus” muitas vezes é apenas o nome que damos aos nossos próprios valores mais fortes — e essa tentação não poupou nem o púlpito nem a academia. Não importa quão sofisticado seja o raciocínio, quão eloquente seja o discurso ou quão piedosa pareça a intenção: se contradiz as Escrituras, perdeu valor antes mesmo de nascer.

A teologia, então, não é um exercício de inventar Deus, mas de ouvir Deus. Ela não é a construção de uma imagem divina a partir da imaginação humana, mas a busca por compreender — com temor e humildade — aquilo que Ele já disse sobre Si mesmo. Como afirmou Anselmo de Cantuária, é a fides quaerens intellectum, a fé que busca entendimento.

O desafio, porém, é que até mesmo essa compreensão é parcial. Como lembra o apóstolo Paulo: “Agora conhecemos em parte” (1Co 13:12). Isso significa que toda teologia legítima carrega consigo uma confissão implícita: “nós sabemos apenas até onde Deus nos permitiu saber”. E é nesse reconhecimento que reside a verdadeira sabedoria teológica.

No fim, dizer algo verdadeiro sobre Deus não começa com falar, mas com ouvir. Começa não com a pena do teólogo, mas com o silêncio reverente do adorador. Começa não com o pensamento humano buscando o divino, mas com o Deus eterno inclinando-se para falar com o ser humano.

Agostinho orou: “Que eu te conheça, ó Deus, e que eu me conheça.” Não por vaidade filosófica, mas porque saber quem é Deus e saber quem somos estão ligados. O conhecimento de Deus começa onde o orgulho do homem é humilhado. Por isso, muitas vezes, o ato mais teológico não é falar, mas calar, esperando que a Palavra eterna rompa o silêncio.

Assim, se queremos falar sobre Deus, precisamos antes aprender a deixar que Ele fale. Porque toda palavra nossa sobre Ele, se não nascer da Palavra d’Ele, não passará de eco — e eco não é voz.

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Casado com Janaína e pai do Ulisses. Tutor da Zaira (Chow-Chow) e do Paçoca (hamster). Escritor por hiperfoco e autista de nascença. Membro e presbítero da Igreja REMIDI e missionário pelo PRONASCE. Teólogo, Filósofo e Pedagogo em formação. Especialista em Docência do Ensino Superior e em Neuropsicopedagogia e Educação Inclusiva. Meus autores preferidos são: Agostinho, Kierkegaard, João Wesley, Karl Barth, Bonhoeffer, Tillich, C. S. Lewis, Stott e alguns pais da igreja. Meus hobbys são: ler, assistir filmes e séries.

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