
Os Cinco Serviços de Todo Cristão: Contra a Hierarquia e a Idolatria do Clero
A história do cristianismo está profundamente marcada por disputas de poder, pela construção de castas espirituais e pela tentativa de estabelecer uma escada de “maiores” e “melhores” dentro do corpo de Cristo. O que começou como uma comunidade de iguais, reunidos em torno do Cristo ressuscitado, se converteu, ao longo dos séculos, em uma instituição estratificada, onde poucos mandam e muitos obedecem, onde uns pregam e outros apenas escutam, onde alguns são vistos como especiais e os demais são reduzidos a espectadores da fé.
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Historiadores da igreja, como Justo González, lembram que o processo de clericalização foi gradual: no início, a comunidade se entendia como sacerdócio universal, mas aos poucos o bispo assumiu a centralidade, transformando o serviço em poder eclesiástico.
Mas o texto bíblico – e, em especial, o grego do Novo Testamento – oferece uma outra perspectiva. Efésios 4:11, frequentemente traduzido como a doutrina dos “cinco ministérios”, é um exemplo claro do quanto a linguagem original foi domesticada para servir a estruturas de poder. A palavra “ministério”, hoje carregada de aura clerical, no grego é διακονία (diakonía), que significa simplesmente serviço. Portanto, não se trata de cargos, títulos ou status; trata-se de modos de servir.
O Texto Grego e suas Distorsões
Efésios 4:11, em sua formulação original, diz:
καὶ αὐτὸς ἔδωκεν τοὺς μὲν ἀποστόλους, τοὺς δὲ προφήτας, τοὺς δὲ εὐαγγελιστάς, τοὺς δὲ ποιμένας καὶ διδασκάλους.
Cada termo, se lido com atenção, denuncia como a tradução eclesiástica transformou funções em cargos:
- ἀπόστολος (apóstolos): literalmente enviado. Não é um título sagrado, mas alguém enviado para uma missão.
- προφήτης (prophḗtēs): aquele que proclama ou fala em favor de. Não necessariamente um vidente, mas alguém que proclama a vontade de Deus.
- εὐαγγελιστής (euangelistḗs): aquele que anuncia as boas novas. Não um cargo clerical, mas todo aquele que proclama o evangelho.
- ποιμήν (poimḗn): literalmente pastor de ovelhas, aqui no sentido de quem cuida, alimenta e guia.
- διδάσκαλος (didáskalos): simplesmente professor. Aquele que transmite a fé e a sabedoria cristã.
O que vemos aqui são funções de serviço e não títulos de prestígio. Contudo, a tradição traduziu e interpretou esses termos como degraus de uma escada de poder. O “apóstolo” se tornou um cargo elevado, o “profeta” um vidente espiritualizado, o “evangelista” um pregador itinerante autorizado, o “pastor” o dono da igreja, e o “mestre” um teólogo especializado.
Exegetas como F. F. Bruce destacam que Paulo não descreve uma hierarquia, mas dons distribuídos à comunidade. O texto fala mais da diversidade do corpo do que de posições fixas de autoridade.
Ao fazer isso, matou-se a essência do texto: não há um grupo de iluminados acima dos demais. Há apenas diferentes modos de servir.
Contra a Hierarquização do Corpo de Cristo
A hierarquização que se construiu ao longo dos séculos não encontra respaldo em Paulo. Em 1 Coríntios 12, o apóstolo é explícito:
“Há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo. Há diversidade de serviços (διακονιῶν), mas o Senhor é o mesmo. Há diversidade de operações, mas é o mesmo Deus quem realiza tudo em todos.”
Note-se: diversidade, mas não hierarquia. O corpo de Cristo não tem membros superiores e inferiores, pois todos são indispensáveis. O olho não é mais importante que a mão, nem a cabeça pode dizer ao pé: “não preciso de ti” (1 Co 12:21). A ideia de que uns mandam e outros obedecem é totalmente estranha ao conceito de corpo que Paulo apresenta.
Em Romanos 12, a mesma lógica:
“De modo que, tendo diferentes dons, segundo a graça que nos é dada, se é profecia, seja segundo a medida da fé; se é serviço, seja em servir; se é ensino, haja dedicação em ensinar…”
Cada serviço é expressão da graça, não um título honorífico. Não há gradação de importância, mas diversidade de funções. Karl Barth já observava que a comunidade cristã só se mantém fiel ao evangelho quando cada dom é reconhecido como expressão da graça, e não como privilégio. A função não cria status, mas responsabilidade.
O Peso Filosófico e Teológico
A hierarquização dos serviços cristãos nasce de uma tentação filosófica antiga: a busca por ordem e poder. Assim como Platão concebia a sociedade ideal com filósofos no topo, guerreiros no meio e trabalhadores na base, a igreja institucionalizou uma versão teológica dessa pirâmide: clérigos no topo, líderes no meio, leigos na base. Essa “platonização” do cristianismo traiu sua essência.
Hans Küng ressalta que a Igreja herdou mais da cultura helenística do que gostaria de admitir: a tendência a estruturar o poder em forma piramidal foi absorvida de modelos políticos e filosóficos da Antiguidade, não do evangelho.
Cristo, pelo contrário, desmonta a escada social:
“Quem quiser ser o maior entre vós, seja o servo de todos” (Mc 10:43-44).
O Reino não é uma pirâmide, mas uma mesa posta. Não é uma escada para subir, mas um corpo para cooperar. Quando a igreja transforma serviços em títulos, ela cria ídolos humanos, sustentando um poder ilegítimo sobre o povo de Deus.
Uma Outra Ótica: O Corpo como Comunhão de Serviços
Ao reinterpretar Efésios 4:11 sob a ótica do serviço, entendemos que todo cristão é chamado. Não há crentes de segunda classe. O Espírito distribui modos de serviço para todos, sem privilégios.
- O enviado não é “mais importante” que o professor.
- O que cuida do rebanho não é “mais espiritual” que o que anuncia as boas novas.
- O pregador não é “mais usado” que aquele que ensina em simplicidade.
Cada cristão é um servidor, não um súdito. O corpo de Cristo não é palco de estrelismo, mas espaço de cooperação.
Dietrich Bonhoeffer lembrava que o chamado de Cristo é sempre para o discipulado prático, não para a busca de títulos; o evangelho nunca institui “cargos” acima de irmãos, mas convoca cada cristão ao serviço no amor.
Conclusão
A teologia da “escada ministerial” não passa de idolatria institucional. O texto bíblico, lido em sua radicalidade grega, revela algo bem diferente: cinco modos de serviço que todo cristão pode desempenhar, segundo a graça do Espírito.
O verdadeiro desafio da igreja hoje não é multiplicar títulos, mas devolver ao povo de Deus sua dignidade: cada discípulo é chamado a servir. E servir não é um privilégio clerical, mas a essência do seguimento de Cristo.
Quando recuperarmos essa verdade, talvez possamos dizer, com Paulo, que “o corpo edifica-se em amor” (Ef 4:16), não em hierarquias.
Bibliografia
BARTH, Karl. A Carta aos Romanos. 5ª ed. São Paulo: Templus, 2017. Link
BONHOEFFER, Dietrich. Discipulado. São Paulo: Mundo Cristão, 2016. Link
BRUCE, F. F. The Epistle to the Ephesians: A Verse by Verse. Robert Frederick, 2012. Link
GONZÁLEZ, Justo L. História Ilustrada do Cristianismo. Vol. 1: A Era dos Mártires. São Paulo: Vida Nova, 2011. Link
KÜNG, Hans. A Igreja. Moraes Editores, 1970.
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